Tenho ouvido muita gente dizer horrores sobre o tempo em que vivemos. Não é a primeira vez. Em 1979, me lembro que o Brasil também nos parecia insuportável, com ditadura e recessão. E não só o Brasil. John Lennon havia decretado o fim do sonho, no início da década, e a ambição havia vencido as utopias. Nós, sonhadores, estávamos mais por fora do que poupança de chacrete.
Como sempre, busquei consolação na poesia. Encontrei um poema de Ezra Pound, chamado “The Lake Island”, que traduzi assim:
“Ó Deus, ó Vênus, ó Mercúrio, protetor dos ladrões,
Emprestai-me uma pequena tabacaria,
Ou estabelecei-me em qualquer profissão,
exceto essa maldita profissão de escritor,
na qual a gente precisa do cérebro o tempo todo.”
Para completar, Antônio Callado tinha publicado alguns anos antes seu livro “Bar Don Juan”, inspirado nas histórias do Antonio’s, o bar mitológico que morava em certa esquina do Leblon. Na epígrafe do livro, Callado citava um texto de W.H Auden: “Quando se interrompe o processo histórico (...), quando a necessidade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora é boa para se abrir um bar.”
Inspirado em tão admiráveis exemplos, resolvi levá-los à prática. Meu bar se chamava Barcarola, em homenagem a um livro de Neruda. Ficava num pequeno terreno à beira-mar, em Rio das Ostras. Havia nele dois palcos, restos cenográficos do musical “Lola Moreno”, que eu escrevera com Bráulio Pedroso e John Neschling. Um deles deveria ser reservado à música, o outro, ao teatro. Em tese, seria um bar dedicado às artes. Um centro cultural alcoolizado.
Doce ilusão. O Barcarola foi um sucesso tão grande que jamais encenamos as peças e shows que pretendíamos. Já na inauguração, meus amigos beberam todo o estoque — confesso que com minha modesta colaboração. Meu sócio Manoel Reis e eu só fazíamos carregar caixas de cerveja, comprar vodca, tomar providências. Minha irmã Elizabeth, que aceitara o cargo de gerente e que dividia as tarefas mais pesadas conosco, sabiamente pediu rebaixamento para garçonete.
Pior é que os bêbados desrespeitavam nossas funcionárias. E eu era o segurança, com meu corpinho de pré-tuberculoso. Apareciam bandidos municipais e estaduais perguntando: “Quem é o dono desta espelunca?” Eu tinha que dar uma de John Wayne, embora não tivesse o armamento, nem a valentia, nem o physique du rôle. Quando me livrei do Barcarola, logo depois do carnaval, suspirei aliviado. Dali por diante, só entraria num bar como sócio-atleta.
Que lições extraí do Experimento Barcarola? Não sei. Talvez todo tempo tenha o seu horror e a sua graça. Pelo menos retrospectivamente. Ou, como disse Guimarães Rosa, viver é muito perigoso. E seja qual for o motivo, mesmo nas piores circunstâncias, precisamos comemorar a vida.
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[1] http://www2.euclidesdacunha.org.br/academicos/geraldo-carneiro