O Acadêmico Arno Wehling, titular da cadeira 37, foi o orador oficial da Sessão da Saudade de Jose Murilo de Carvalho, realizada na última quinta-feira, dia 17 de agosto
Leia abaixo, o discurso proferido:
A homenagem que hoje a Academia Brasileira de Letras presta a José Murilo de Carvalho é, contrariamente ao senso comum, também um ritual de passagem. Ritual de passagem, porque o acadêmico se afasta de nosso quotidiano e ingressa na grande comunidade que constitui a vida intemporal da Casa. Se a ABL reúne em si passado, presente e futuro, é porque os que se foram continuam presentes, independentemente de épocas, estilos, formas de expressão e visões de mundo.
José Murilo de Carvalho viveu, e viveu intensamente, essa percepção. Ao pesquisar a história da Academia, deixando-nos os “Subsídios”, com o habitual aparato estatístico que manejava habilmente, e ao cuidar com desvelo de seu Arquivo, não o fazia apenas por dever do ofício de historiador, mas pela preocupação em deixar sempre desperto o espírito acadêmico. Sem isso - conforme entendia - a instituição não seria capaz de se manter. Sabia, por outro lado, não ser com o antiquarismo, mas pelo vibrar da vida cultural, que ela continuaria existindo, geração após geração.
Nessa despedida, senhor presidente, familiares de José Murilo, querida Norma Cortes, caros colegas, sei que não devo traçar o itinerário intelectual nem destacar as vitórias conquistadas. De certa forma já o fiz, com ele presente, nos 70 e nos 80 anos.
Gostaria de sublinhar a dimensão humana de José Murilo de Carvalho, particularmente importante numa instituição em que o convívio de pessoas absolutamente díspares é não só boa prática social como necessidade de realização do próprio ethos da Casa.
Creio que em abono dessa pretensão posso invocar alguma experiência. A profissional, sem dúvida, pois nessa corporação poliédrica de historiadores e cientistas sociais tínhamos várias afinidades – pertencíamos, afinal, à mesma tribo, como gostava de dizer. A valorização das instituições, como pude atestar quando de seu ingresso no Instituto Histórico, na Academia Brasileira de Ciências e na própria ABL. E as mais prosaicas: éramos vizinhos de bancada nesta sala de sessões – a bancada da “montanha”, como dizia em alusão à assembleia francesa – colaborávamos permanentemente na direção do arquivo e das bibliotecas e voltávamos para casa quase sempre juntos, pois José Murilo alternava minha carona com a de Edmar Bacha.
A Academia se despede de alguém cujas qualidades são fáceis de identificar e creio que meus colegas compartilharão a percepção.
Desde logo, a seriedade com que considerava tudo, o que se traduzia em cuidado minucioso na elaboração de juízos e na enunciação das opiniões. Em consequência, muito equilíbrio e ponderação, presentes em análises percucientes e eventualmente audaciosas, a que não faltava a elegância na exposição. Como também eventualmente não estava ausente algum humor crítico, leve ou ácido, em especial nas exposições orais – atitude que revelava, penso eu, impaciência com a falta de entendimento para o que lhe pareciam, à cartesiana, “ideias claras e distintas”.
Esse breve bosquejo do intelectual, porém, só se completa se lembrarmos o forte perfil ético de José Murilo de Carvalho. Não é pouco, quando sabemos como na vida em sociedade são fortes as cavilações, invejas, tergiversações e duplas faces. O homem e a obra, ao contrário, são íntegros, solares, translúcidos. E arriscaria dizer, lembrando Joaquim Nabuco, objeto de sua admiração, que este perfil ético é, nele, “o traço todo da vida”.
Com esses instrumentos morais e intelectuais José Murilo foi à luta. Impregnado de racionalidade, mas uma racionalidade que não se confinava ao gabinete de trabalho ou ao arquivo, antes se apoiava na vida. Certa vez convidou-me para falar na Academia sobre a ideia de História em Ortega y Gasset, num dos ciclos promovidos pela Casa. Até hoje não sei o grau de proximidade que tinha com o pensamento ortegueano – Norma talvez possa elucidar este ponto. Mas creio que a ele se aplica muito bem não só a orientação raciovitalista como sua motivação. Diz Ortega:
“O que me é dado ao ser-me dada a vida é a inexorável necessidade de ter que fazer algo, sob pena de deixar de viver... Vida é, pois, sempre, queira-se ou não, um que hacer algo.”
José Murilo dava a impressão de estar sempre prestes a “fazer algo”. Não, me expresso mal: dava-me a certeza de que sempre tinha algo a fazer. Mesmo em nossa última conversa, ao telefone, a despeito do evidente esforço para falar, era o futuro, “o que tínhamos a fazer”, que importava.
Esse raciovitalismo, ou essa racionalidade vital, foi canalizada para compreender seu país. Sabemos que deixa uma das obras mais importantes para a compreensão do Brasil. Sabemos que há temas da história do Império e da República, como a atuação das elites, a cultura política, o papel das forças armadas e a cidadania para os quais deu contribuições que se incorporaram, definitivamente, à nossa maneira de ver a formação brasileira. Sabemos que foi um pesquisador para quem, além dos trabalhos individuais, era relevante atuar em equipe, e liderava exemplarmente.
Não se pode conhecer o significado das elites oitocentistas e a própria existência do Império sem passar por seus estudos sobre a escola de minas de Ouro Preto e a sofisticada caracterização, inclusive estatística, como era seu gosto, que fez a propósito da “construção da ordem” estatal.
Sobre a cultura política são indispensáveis, os bestializados, desenhando a dicotomia povo – República e a visão do “bolchevismo de classe média” do Apostolado Positivista e seu legado para intelectuais e militares messiânicos e tantos ricos insights mais.
O livro sobre as forças armadas termina com uma relação de perguntas instigadoras e um comentário entre irônico e profético: “por falta de vontade política, de competência, de capacidade de antecipação, de virtu, como dizia Maquiavel, podemos ser novamente atropelados pelas rodas da fortuna.”
Seu estudo sobre a cidadania, aplicando ao Brasil procedimentos de Marshall sublinha outra dicotomia, a que existe historicamente entre o sistema eleitoral e a efetiva prática democrática.
Isso, e muito mais, sabemos e devemos a José Murilo de Carvalho.
O que não sabemos, excluindo as motivações estritamente acadêmicas, é o porquê dessas escolhas. Arrisquei uma explicação na comemoração de seus 70 anos: fazia história, como dizia Goethe, para se livrar do passado. Qual passado? O colonial: dependente, escravagista, clientelista, patrimonialista, mandonista. Nem por isso caiu em anacronismos ou juízos de valor intempestivos, antes utilizou seu racionalismo crítico para compreender sem justificar, e para concluir apontando caminhos.
Disse-me, mais tarde, que eu tinha sido bastante fiel à sua trajetória e a seus objetivos.
Trajetória, aliás, que começa com a esperança do jovem dos anos cinquenta, impregnado de desenvolvimentismo, que esperava ver o país arrancado de seu passado imóvel e chega ao intelectual da terceira década do século XXI com certo desencanto. Digo certo desencanto, porque talvez essa percepção esteja mais perto da visualização de circunstâncias conjunturais do que de uma convicção profunda.
O subtítulo de um de seus livros mais bem sucedidos, “Cidadania no Brasil – o longo caminho” talvez explique a razão do desencanto e de certa maneira o relativize. Há um longo caminho, porque as etapas de construção da cidadania foram, estão sendo, muito mais demoradas do que todos nós – José Murilo sobretudo – esperávamos. Entre o jovem Murilo dos anos 50 e o maduro intelectual de setenta anos depois há duas gerações – ou quatro, para Ortega – que não viram a plena superação do passado. E tenho a impressão de que o acadêmico de 2023 não se desencantou das expectativas do jovem mineiro que ele foi; apenas, mais uma vez se impacientou com a lentidão do processo.
De toda forma, pelo que representou para a interpretação do Brasil – portanto, para a cultura e a ciência do país – e para a Academia Brasileira de Letras, José Murilo de Carvalho será sempre uma referência maior.
18/08/2023