Quando toca o despertador, você desconfia de que sofre de disania? Talvez, se não tivesse assistido a um filme de terrir ontem à noite, os pesadelos fossem evitados… O pior é que não dá nem para esperar pelas férias. Com a pejotização do mercado de trabalho, bate aquela saudade de ser CLT.
Calma, se você não entendeu totalmente o parágrafo acima, não se preocupe — ele traz 3 palavras que ainda não existem no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp). “Disania”, “terrir” e “pejotização” fazem parte de uma “lista de espera”: ainda dependem da decisão dos lexicógrafos da Academia Brasileira de Letras (ABL) para serem incorporadas oficialmente ao idioma.
A pedido do g1, três especialistas explicaram como funciona esse processo de ampliação do vocabulário: Ricardo Cavalieri, coordenador da Comissão de Lexicografia da ABL; Cassiano Sydow Quilici, lexicólogo e professor da PUC; e Marcelo Módolo, linguista da Universidade de São Paulo (USP).
Nesta reportagem, entenda:
O que é Volp? É o documento oficial que estabelece qual é a grafia correta de cada palavra na norma padrão do português brasileiro. Ele tem força de lei.
Ao contrário de dicionários como Houaiss e Aurélio, que são mais descritivos e que registram inclusive gírias para mostrar o "uso cotidiano da língua", o Volp privilegia a forma culta. Nos resultados de busca, ele não mostra o significado do termo, e sim a forma certa de escrita, a flexão da palavra (o plural de couve-flor, por exemplo, ou um feminino irregular) e a classe gramatical dela (substantivo masculino, verbo etc.).
“O Volp não introduz uma palavra no léxico nem é um censor que autoriza ou não o ingresso de um termo na língua. Quem cria é o falante. O que o VOLP faz é registrar”, explica Ricardo Cavalieri, da ABL.
Um termo que é só “modinha do momento” não pode entrar no VOLP — é preciso haver estabilidade e continuidade de uso. “Palavras que surgem em novelas ou em memes e depois desaparecem não devem ser registradas”, diz Marcelo Módolo, linguista da USP.
Podemos pensar, por exemplo, em “Inshalá”, que dominou as conversas em 2002, durante a transmissão de “O Clone”, na TV Globo, mas que caiu em desuso pouco tempo depois. Fez sentido não entrar no Volp.
Os principais critérios levados em conta pela comissão de lexicógrafos para incorporar um novo termo ao nosso vocabulário são os seguintes:
E quem está na ‘sala de espera’?
Para acompanhar essa dinâmica, a ABL mantém o Observatório Lexical, que funciona como uma "sala de espera”. Ali, determinados termos sugeridos por leitores ou por profissionais do Volp ficam no aguardo de uma decisão: são apenas um modismo ou estão sendo usados de forma estável?
Veja a lista das 5 outras palavras que estão sendo analisadas pelos lexicógrafos no momento e o significado de cada uma delas (além de pejotização, disania e terrir, já mencionadas no início da reportagem):
“Vejo com mais simpatia [a incorporação de] pejotização do que [de] terrir, porque já está nas sentenças judiciais, na doutrina do direito trabalhista e em livros”, afirma Cavalieri.
A seguir, descubra exemplos de palavras que passaram por esse processo de análise e que foram oficialmente incorporadas à língua portuguesa recentemente:
Ligadas a movimentos sociais:
Ligadas a tecnologias
Ligadas à pandemia:
Outras:
Por que continuam surgindo novas palavras?
Você já deve ter ouvido falar que a língua é viva e está em constante movimento. A evolução da tecnologia, as discussões sociais mais recentes, a influência de idiomas estrangeiros e o aprofundamento de conhecimentos em determinadas áreas (como medicina) criam constantemente a necessidade de novas palavras. São termos com os quais nem sonhávamos há algumas décadas.
Em geral, nesse processo de ampliação do vocabulário, acontecem fenômenos como:
1- Empréstimos Linguísticos: Frequentemente associados à introdução de novas tecnologias, produtos, máquinas ou procedimentos que necessitam de nomes.
“A tendência, nesses casos, é importar a palavra”, diz Cassiano.
Veja exemplos: botox, bullying, compliance, coworking, crossfit, delay, home office, live-action, lockdown, personal trainer e podcast (do inglês); emoji, shiitake e shimeji (japonês); parkour, physique du rôle e sommelier (francês); paparazzo e cappuccino(italiano); chimichurri (espanhol).
Há um esforço para "desastrangeirizar" palavras importadas, adaptando-as ao sistema linguístico do português. Pode haver mudanças na grafia ou na fonética: football, por exemplo, virou futebol.
“A gente não fala hot dog [com a pronúncia em inglês]. É mais comum 'desestrangerizar' [e falar algo como /róti dógui/] ou até criar em cima disso: dogão”, explica o lexicólogo da PUC.
Em alguns casos, existe uma concorrência lexical: é possível, explicam os linguistas, encontrar uma mesma reportagem de jornal falando em “bike” e em “bicicleta”. Um “engolirá” o outro? É uma resposta que pode levar décadas ou séculos para ser dada.
E atenção: neste processo de ‘importação de palavras’, é possível que haja também mudanças no sentido da palavra.
Ele dá outro exemplo: “point": “Posso falar que a Vila Madalena [bairro de São Paulo] continua sendo um point em SP. É um lugar legal para beber, paquerar, namorar, curtir. Para um americano, isso não existe. Eles chamam de ‘Brazilian English’”, diz.
É que, em inglês, point (como substantivo) vai significar ponto em:
“Point”, no sentido de lugar badalado, é um aportuguesamento do termo. Seria algo próximo a “hot spot”.
Retrofitagem, que está na "sala de espera”, foi uma criação da engenharia e da arquitetura que surgiu a partir de “retro”, “fit” e “agem”, que vêm do latim. Microssono usa “micro”, do grego, e junta à nossa palavra “sono”.
O documento do Volp reforça que muitos acréscimos de vocábulos estão relacionados “a diversas áreas do conhecimento, como medicina, psiquiatria, psicologia, sociologia, direito, botânica, zoologia, arquitetura e urbanismo, gastronomia, cinema e esportes, etc."
lhe só alguns casos mencionados pelo próprio Volp: teleinterconsulta, laudar, biopsiar, bucomaxilofacial, ciberataque e cibersegurança.
Mas, lembre-se:
"A força linguística é muito maior do que decretos. Decretos não conseguem parar uma língua. A língua está na boca das pessoas", diz Módolo.