Para povos originários do continente ameríndio, assim como dos países africanos, nomear alguém é estabelecer genealogia, pedra de toque e fundamento para marcar destinos.
Os direitos dos povos nascem a cada dia. Assim, vamos celebrar pequenas conquistas, pois avançamos um direito fundamental para os povos originários no Brasil nesse primeiro semestre de 2025, marcado por trabalhos de mutirão da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) para promover a documentação de pessoas indígenas, com a inclusão em seus documentos civis do nome próprio na língua materna, assim como a informação da etnia.
São direitos inscritos na nossa Constituição desde 1988 e, por décadas, negligenciados. O censo da população indígena foi, por duas décadas, omisso no quesito etnia, ausente na cédula que traz as perguntas: raça, cor etc. Assim, no curto período de uma década, a população indígena contada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apresentou crescimento surpreendente comparado com o índice de crescimento da população geral, indo de cerca de 900 mil indígenas em 2010 para 1,7 milhão no Censo 2022.
A pergunta sobre etnia indígena passou a ser o que distingue esse contingente da população, antes definida nessa contagem do Censo apenas pela pergunta: qual a sua cor? Cor roxa, cor rosa, lilás.
Finalmente, estamos aproximando os dados da realidade da diversidade étnica dos povos originários, que poderão deixar de figurar nos registros como "índios" ou indígenas, sendo ambas informações inadequadas por carregar "um defeito de cor" —aqui, peço licença para citar o título do livro de Ana Maria Gonçalves, a mais nova integrante da ABL (Academia Brasileira de Letras), uma obra clássica de origem.
Nessa semana, leio uma matéria do jornal The Guardian que traz a história do escritor Ngũgĩ wa Thiong’o, despertando para o prejuízo da linguagem impositiva do colonialismo europeu na educação escolar, marcadamente racista.
Em países africanos, como aqui no nosso continente, a violência epistêmica é também epidérmica, sendo utilizada como marcação pela cor da pele do outro. Esse dano irreparável se abateu sobre nossos povos que sofreram a invasão europeia, com a imposição das línguas estrangeiras, a começar pela imposição de nomes, como James, Moses, Maria, Isabel e tantos apelidos colados ao corpo daqueles que já nasceram do sonho de seus ancestrais.
Ngũgĩ wa Thiong’o —um renomado escritor de obras traduzidas para o inglês e outros idiomas que insiste na sua escrita em língua materna—, mesmo tendo recebido o nome colonial James, resgatou ele mesmo seu nome próprio. Por toda a vida, Ngũgĩ fez da palavra um território de resistência. Escrevia e publicava primeiro em kikuyu para depois, ele mesmo, traduzir para o inglês, como quem planta a raiz antes de espalhar a semente, garantindo que o fruto nunca se esqueça de onde veio.
A jornalista e escritora de origem manauara Verenilde Pereira, autora de "Um Rio sem Fim" (Alfaguara), traz a repetida e trágica história das meninas indígenas retiradas de suas aldeias, nos rios e nas florestas da região do médio e alto rio Negro, onde missões católicas faziam imposição do batismo e nomeavam a todas Maria, Maria da Assunção, das Graças, de Jesus. Retiravam das suas famílias de origem meninas de tenra idade para cumprir estudos nos internatos das missões. Eram levadas para Manaus como "pencas de banana, cachos de pupunha".
Sem identidade ou etnia para poder resgatar suas origens, nunca puderam voltar para casa. Que todas tenham ao menos seu direto assegurado à proteção e ao registro do nome familiar na língua materna, sua origem étnica e memória.
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[1] http://www2.euclidesdacunha.org.br/academicos/ailton-krenak