A despeito das diferenças políticas e da distância geográfica que os separavam, o gaúcho Erico Verissimo e o baiano Jorge Amado mantiveram uma amizade sólida por mais de 40 anos, o que se comprova em cartas que formam um painel da cultura e da sociedade brasileira daquele período. Na correspondência, que será reunida em livro, os escritores comentam suas obras e seus embates com a censura e a ditadura militar.
o começo dos anos 1930, Erico Verissimo era um jovem escritor com menos de 30 anos que despontava no cenário nacional graças a um livro de contos ("Fantoches", de 1932), mas sobretudo por causa do romance "Clarissa" (1933).
Sete anos mais novo, mal entrado nos 20, Jorge Amado era uma revelação ainda mais impressionante: tinha 19 quando publicou seu primeiro livro, "O País do Carnaval" (1931), e até 1937 (quando tinha 25) publicaria outros cinco romances ("Cacau", "Suor", "Jubiabá", "Mar Morto" e "Capitães da Areia").
Transformariam-se nos dois escritores brasileiros mais populares durante muitos anos do século 20.
E, apesar da diferença de idade, da distância —Erico vivia em Porto Alegre, Jorge entre Salvador e o Rio— e das diferenças políticas —o baiano era comunista, o gaúcho se declarava um socialista democrático, humanista acima de colorações partidárias—, tornaram-se grandes amigos, uma relação que se estendeu até a morte do autor de "O Tempo e O Vento", em 1975, e que nasceu e foi alimentada por cartas.
Segundo Paloma Amado, filha de Jorge, um livro com a correspondência entre os dois será publicado em breve pela editora Casa de Palavras, da Fundação Casa de Jorge Amado. O volume está "quase pronto", disse Paloma à Folha, mas não tem data para sair. Dificilmente será publicado neste ano, quando completam-se 120 anos de nascimento e 50 anos de morte de Erico.
A reportagem teve acesso a 15 cartas/bilhetes/telegramas trocados entre os dois principalmente nos anos 1970, que retratam uma amizade sólida e compõem um painel da cultura e sociedade brasileira daquele período.
"E eu admiro cada vez mais a sua capacidade de trabalhar e conseguir fazer o que faz", escreve Erico para Jorge em 5 de março de 1965. "A sua prosa está gostosíssima. Já era antes, mas agora —não sei como explicar— é um gostoso de fruta completamente madura."
Cinco anos depois, em 19 de março de 1970, Jorge lança a Erico uma ideia para driblar um projeto do governo ditatorial de Médici de censura prévia de livros.
"Essa história de censura vai realmente tornar-se séria pois não vejo perspectivas de mudança para breve. E se publicássemos, você 'A Hora do Sétimo Anjo" [romance que Erico não concluiria], eu uma historieta que procuraria escrever (em verdade não pensava escrever este ano, mas...), em Portugal? Já hoje é possível publicar em Portugal sem censura prévia. Talvez isso fosse bom, que lhe parece?"
A batalha contra a censura em 1970 reaproximou de vez os escritores, cuja amizade fora arranhada na década de 1950 por uma questão política. Erico se recusou a participar de um encontro de intelectuais de esquerda no Chile, em 1953, o Congresso Continental da Cultura —coordenado pelo comunista Conselho Mundial da Paz, patrocinado pelos soviéticos—, do qual Jorge era um dos organizadores.
Em "Solo de Clarineta" (1973), suas memórias, Erico explica por que não foi ao evento no Chile. "Duma feita cheguei a forçar minha natureza e pela primeira vez na vida fiz um discurso político em praça pública, da escadaria da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, ao lado de deputados comunistas. Combatíamos juntos a odiosa Lei da Segurança Nacional, que se me afigurava de coloração fascista."
"Isso, entretanto, não impediu que os jornais do PC brasileiro me atacassem repetidamente, insinuando que eu estava a soldo da Wall Street ou/e do Departamento de Estado americano. É que a esquerda, bem como a direita e o centro, tem também sua mitologia", escreveu.
Em maio de 1970, Erico contou a Jorge que "foi lida na Câmara Federal, pelo deputado gaúcho Paulo Brossard, uma carta minha contra a censura prévia e o monstruoso parecer do Plínio Salgado. Vocês leram?". Em resposta, o baiano escreve: "Toda a imprensa aqui noticiou com destaque a leitura da sua carta na Câmara Federal. Foi ótimo. De qualquer maneira agora estamos com a censura prévia aprovada. Vamos ver no que dá".
Num telegrama enviado em 8 de dezembro de 1971, o baiano elogia o recém-lançado livro do gaúcho, uma alegoria política crítica ao autoritarismo, protesto velado à ditadura vigente. "Termino leitura 'Incidente Antares' entusiasmado parabéns grande romancista grande cidadão abraços Jorge Amado."
Os amigos escritores mesclavam temas literários, políticos e familiares. Luis Fernando Verissimo, filho de Erico, era tratado por Jorge como "Joãozinho" (Erico entrava na brincadeira referindo-se ao caçula como "o meu Joãozinho". Talvez fosse porque o filho homem do baiano se chamava João.
Em crônica publicada em 2001, Luis Fernando dá outra versão para o apelido. Conta que, quando tinha uns 3 anos [em 1939 ou 1940], Jorge Amado ficou hospedado por alguns dias na casa da família, "escondido da polícia política". "Minha irmã [Clarissa] brincava de cabeleireira com seus cabelos, e ele inventou que eu não tinha cara de Luis Fernando, tinha cara de João. Até a última vez em que nos encontramos, me chamou de João."
Primórdios e fim
Como descreve Josélia Aguiar em "Jorge Amado: Uma Biografia" (Todavia), partiu do rapazola Jorge, admirador de Erico, a iniciativa "de se aproximar, enviando carta e o que havia publicado", isso naquele início dos anos 1930.
"Aqueles dias seriam de cúmplice interlocução: o que cada um estava a produzir, traduções, vendas e concursos eram conversados com a intermediação do correio", escreve a biógrafa. "Jorge lhe enviava títulos publicados pela [editora] José Olympio [onde trabalhava] e pedia que fizesse o mesmo [Erico trabalhava na editora Globo de Porto Alegre], não só as edições literárias, também as policiais, das quais era ‘leitor assíduo’.".
A troca epistolar se prolongou por mais de 40 anos. Em 6 de outubro de 1975, um mês e meio antes de morrer (de infarto), Erico mostrou mais uma vez sua perplexidade com a produtividade do amigo baiano, que lançara "Tereza Batista Cansada de Guerra" três anos antes.
"Você é um monstro. Tem um livro novo pronto. Eu acho que perdi o entusiasmo (sei que isto pode ser passageiro) pelo que escrevo. Ou então estou entrando, ou já entrei, na velhice." Tinha 69 anos, às portas dos 70, que não conseguiu comemorar.
Matéria na íntegra: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/08/cartas-entre-erico-verissimo-e-jorge-amado-escritores-mais-pop-do-pais-por-anos-sairao-em-livro.shtml [1]
21/08/2025Links
[1] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/08/cartas-entre-erico-verissimo-e-jorge-amado-escritores-mais-pop-do-pais-por-anos-sairao-em-livro.shtml