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Praga, segunda vez

 

Depois de 25 anos, estou de volta à velha Boêmia, primeiro contato que tive com o mundo socialista nos anos 1960. Era inverno, muita neve, 13 graus abaixo de zero, pegaria tempo pior em Moscou e Murmansk, a caminho de Havana.

Hoje, saímos de Veneza às 11h30, fizemos escala em Milão (Malpensa), uma miséria de atraso, ficamos horas esperando o voo da Alitalia, que estava atrasadíssimo, serviço péssimo não apenas da companhia, mas do próprio aeroporto, enorme, labiríntico, perdi o medo dos aviões, mas ganhei pânico dos aeroportos, pelas conexões, "gates", esteiras, balcões de check-in.

Além de atrasado, o voo começou mal, com cheiro de querosene dentro da cabine, a tripulação com extintores de incêndio procurando algum foco de incêndio. Apesar da primeira classe esquálida dos velhos DC-9, nada comi, preferi dormir, mas não consegui. Desembarque razoavelmente fácil, troquei US$ 200 por coroas tchecas, viemos para um bom hotel, parece cenário de filmes dos anos 1930, com Charles Boyer, Loretta Young, Greta Garbo, Fred Astaire, Melvyn Douglas etc.

Enorme a suíte, com quarto, sala, escritório, tudo muito limpo, cheirando a novo. E lustres de cristal tcheco até no banheiro, um lustre colossal, maravilhoso. Caí duro no sofá da sala, dormi logo, diz Beatriz, que nunca me viu tão cansado, ela arrumou minhas coisas, quando acordei já estava com a banheira cheia de espuma esperando pelo banho.

Jantamos no hotel, está chuviscando, comi uma bela milanesa, bebi uma cerveja local, um grupo musical tocava canções ciganas ou parecidas. "As Czardas", de Monti, em destaque.

Compramos uma excursão para amanhã, a fim de darmos um giro fundamental pela cidade, depois iremos por conta própria aos lugares que nos interessarem. Quero rever a velha sinagoga e o cemitério dos judeus, que tanto me impressionaram em 1968. Além do castelo, que deve ter inspirado Kafka, quero rever a catedral, as duas bibliotecas de teologia e filosofia, que eu achei a coisa mais bonita que havia visto até então. Escrevi um postal para o Carpeaux e só depois me lembrei que ele já havia morrido. Mesmo assim, botei na caixa do correio.

São 23h30, estou acabando um Rey del Mondo, aqui mesmo no apartamento, com as janelas abertas, apesar do frio.

08.11.01 - Café no quarto, saímos num tour com um jovem casal alemão e uma guia que falava mal tanto o francês como o alemão. Giro pela Old City, revi as duas bibliotecas que tanto me impressionaram, a catedral, alguns bairros típicos, uma panorâmica da cidade, pegamos um táxi de volta ao hotel.

Lembro que, em 1967, pensei em ficar por aqui, desistindo do asilo em Havana. Telefonaria para o Mario Benedetti, em Paris, que estava me rastreando. Ao atravessar uma das pontes sobre o Vltava, um velho tocava acordeão, uma canção de Smetana que não identifiquei.

Depois de amanhã, Beatriz irá para Budapeste num voo às dez horas, e eu irei para Roma no único voo da Alitalia. Ficarei cinco horas entregue a mim mesmo, com uma porção de malas. Se houver retardo no voo, estarei frito, pouca gente fala inglês ou francês, a segunda língua aqui é o alemão.

09.11.01 - Dia de sol e frio em Praga. Demos um pulo na agência da Alitalia para confirmarmos as passagens. Beatriz segue para Budapeste às dez horas, devendo estar no aeroporto às oito. Eu vou mesmo para Roma, no voo marcado para bem mais tarde. Sairei do hotel depois da Beatriz, me virarei sozinho, levando minhas duas malas e a mala maior da Beatriz. Será uma odisseia, mas tudo bem.

Tomamos um táxi por três horas, 1.500 coroas, e fui rever a velha sinagoga, o cemitério antigo dos judeus, com suas pedras desalinhadas. Entre as vítimas tchecas do Holocausto, cujos nomes estão gravados nas paredes da sinagoga, encontrei um certo Bloch, Adolf, nascido em 1862.

Não pode ser o mesmo que conheci, era de 1908 e se chamava Abracha, nasceu na Ucrânia. Também mandei um postal para ele, que morreu seis anos atrás. Como no caso do Carpeaux, transfiro o problema para o correio. Quando chegar em Roma, mandarei um postal para mim mesmo, em Praga. Como endereço, botarei a rua em que Kafka morava.

Folha de S. Paulo, 09/11/2012