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Samba do crioulo doido

 

Ainda bem que está acabando a onda de testemunhos e confissões sobre o movimento militar de 64. Um dos problemas da mídia, em geral, é não saber (ou não poder) dosar o tamanho e o grau desses aniversários redondos de fatos ou pessoas históricas.


De minha parte, e apesar de ter caído em tentação, atendendo a pedidos de depoimentos sobre o assunto, já não suportava o excesso de críticas e denúncias contra aquele movimento, a começar pela minha própria contribuição.


Apesar de tudo, até certo ponto, foi divertido ver a confusão de datas, pessoas e fatos na ótica de testemunhas que se prestaram a engrossar a avalanche contrária ao golpe de 64.


Acho que já contei: um repórter me perguntou como eu reagi quando fui preso pelo Filinto Müller. O escriba que vos escreve tinha míseros dois anos quando o famoso policial do Estado Novo fez das suas. Sim, escapei das garras do Filinto Müller, do mesmo modo como escapei da matança dos inocentes promovida por Herodes - talvez pelo fato de nunca ter sido inocente.


Em prova de vestibular, Tiradentes foi arrolado entre as vítimas do DOI-Codi. E a resistência da mídia, em geral, que só existiu depois do AI-5, em dezembro de 1968, foi antecipada em quatro anos. Nenhum jornal publicou versos de Camões e receitas de bolo em 1964. Pelo contrário: a maioria dos veículos da mídia fartou-se em elogiar o movimento militar daquele ano. E alguns órgãos chegaram a colaborar com a repressão, lembrando pessoas e entidades que deveriam ser punidas e expulsas do seio da sociedade. Para ficarmos num exemplo maior, a cabeça de JK foi pedida por jornais desde o início do golpe. E colocada na bandeja meses mais tarde.


Prevaleceu um samba do crioulo doido, dando a impressão de que meia dúzia de militares renegados e boçais conseguiram prender e calar 65 milhões de heróicos resistentes ao totalitarismo. Não foi bem assim.


 


Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em 06/04/2004

Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em, 06/04/2004