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De inventos e inventores

 

A foto de Einstein descabela-do que nem maestro após reger a abertura de "O Guarani" santificava o Festival do Inventor, ali na galeria do edifício Avenida Central, num ano qualquer da década de 50. Ao lado, o retrato de Edison, austero, na pose que a lâmpada homônima divulgou. E depois de Einstein e Edison, os inventores nativos, não tão descabelados nem tão divulgados.


Pois, na onda dos festivais que começava naquele tempo, a abnegada classe dos boladores de coisas também promoveu seu festival.


A pobreza das salas atestava a pobreza dos inventores e de alguns dos inventos. Os inventores em geral são pobres, é a pobreza que lhes dá ócio e incentivo para pensarem num mundo mais confortável e digno de abrigar a humana faina. A riqueza nunca inventou nada, afora a manteiga gelada e a azeitona sem caroço.


Não há problema importante ou mesquinho, da coletividade ou do indivíduo, que não tenha inspirado a inventiva nativa. Desde o porta-avião-submarino do sr. Bellini Faria até o remédio para a calvície, do sr. Anfilofio Cerqueira Calado, natural de Bom Conselho.


Entre as duas invenções, a "alta freqüência específica" que cura câncer e tubercxolose. Bem montada e mantida, a máquina, com sua "freqüência alta e específica", é capaz de curar embriaguez e falta de dinheiro. Com algumas adaptações eletrônicas, o engenho é capaz de chegar a isso — é o que me informa o cicerone.


Menos espetacular que a alta frequência, mas também específica, é a invenção do salto de borracha com molas. "Vital" é seu nome. E o slogan é animador: "Vital significa um passo no progresso". O inventor me explica que a espinha dorsal recebe e transmite ao cérebro 11.789 choques por dia. "Vital" amortece e elimina esses 11.789 choques e poupa ao crânio 11.789 batidas desnecessárias. Até adultérios acontecem por causa dessas 11.789 batidas. Prometo a mim mesmo comprar um "Vital" na primeira oportunidade. Darei, solidário, meu passo ao progresso.


O cidadão Bellini Faria é um amargurado. Em 1931, inventou o porta-avião-submarino (vim hangar submerso —assim o inventor define o seu invento), mas ninguém quis saber dele. Nem dele nem do seu invento. Foi ao ministro da Marinha, exibiu a maquete, o ministro achou graça. Depois, durante a guerra, foi surpreendido com a notícia: os japoneses estavam usando o seu invento.


—O serviço secreto japonês roubou-me os planos.

 

—O Japão perdeu a guerra, sr. Bellini.


—E. Mas não me pagaram os direitos autorais.

 

Aperto sua mão, presto solidariedade. O sr. Bellini inventou mais coisas: grampos ferroviários, agulhas para cego enfiar a linha, torneiras que poupam água, canos que não arrebentam, gavetas que não emperram, o sr. Bellini é fértil.


Mas nenhuma de suas glórias o consola do roubo. Olho mais uma vez o porta-aviões-submarino e vejo que há as iniciais BF, na popa.

 

—Os japoneses conservaram o BF no navio?


—Sim. Mas botaram um "maru" por baixo. Os ladrões.


O doce não é para quem o faz: é para quem bota o "maru" por baixo. O Japão perdeu a guerra, e o sr. Bellini, o invento. E, para não perder o meu tempo, visito o sr. Anfilofio Cerqueira Calado, natural de Bom Conselho, inventor da "definitiva e completa cura da calvície".


Seu preparado evita a queda dos cabelos e faz nascer aqueles que já não caem mais. Mas não é qualquer mão profana que pode aplicar seu miraculoso preparado de ervas medicinais. O sr. Anfilofio tem antes de consultar os astros.


O guia me sugere engrossar as fileiras, inventar qualquer coisa.

 

—Inventar o quê?


Na verdade, gostaria de inventar uma lei que diminuísse em 70% a lei da gravidade para aqueles que chegam a certa idade. E, de repente, descubro que nada daquilo me serve. Não sou cego para enfiar a Unha em agulha especial nem tenho planos imperialistas de conquistar o mundo com os porta-aviões-submarinos "BFMaru".


Passo pelas fotos de Einstein e Edison e me sinto vagamente culpado de não precisar de nada daquilo. Assino, no livro de visitas, uma mensagem de integral solidariedade à raça humana em geral e aos inventores em particular e deixo o resto para assinar esta crônica —humilde invenção prejudicada pela falta de inventiva.


Folha de S. Paulo, 13/11/2009