O carioca Machado de Assis viveu intensamente nos bairros do Rio de Janeiro e fez deles cenários inconfundíveis de seus romances. Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, passou a infância em Maceió e no Recife, mas foi o Rio que definiu como casa. O mineiro Carlos Drummond de Andrade e o pernambucano Manuel Bandeira escreveram juntos Rio de Janeiro em prosa e verso (1965), mapa literário que, ao mirar a metrópole onde escolheram morar, ultrapassa fronteiras geográficas. João do Rio chamou atenção para a alma encantadora das ruas cariocas, Lima Barreto sublinhou o lado perverso delas, enquanto Rubem Fonseca passeou pela cidade embrutecida.
O Rio sempre foi referência para a literatura brasileira formar sua identidade. Ou, para usar uma expressão de Gilberto Gil, baiano imortal da Academia Brasileira de Letras que também escolheu a cidade para viver, o Rio deu régua e compasso a muitos escritores. Outro verso da canção “Aquele abraço”, escrita por Gil, foi escolhido e ligeiramente modificado para uma iniciativa sem precedentes no país: “O Rio de Janeiro continua lendo” é o slogan que acompanha a chancela de Capital Mundial do Livro, que a cidade passa a ostentar a partir desta quarta-feira, 23 de abril.
O título é concedido desde 2001 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) ao longo de um ano, com o objetivo de fomentar a leitura. Não é pouca coisa: trata-se da vigésima quinta cidade a ostentar o posto no mundo, sendo a primeira de língua portuguesa.
A data em que o título passa da capital anterior, a francesa Estrasburgo, para a nova não foi escolhida por acaso: 23 de abril é o Dia Mundial do Livro, definido pela ONU por ser a data em que morreram dois dos maiores escritores da literatura universal, William Shakespeare (1564-1616) e Miguel de Cervantes (1547-1616).
No Brasil, é ainda Dia de São Jorge, referência para várias religiões e obras culturais, e Dia do Choro, por ser a data atribuída ao nascimento de Pixinguinha. Na manhã desta quarta-feira (23), várias dessas referências se misturaram num espetáculo musical dirigido por Edson Erdmann, no Teatro Carlos Gomes, no Rio.
“Queremos ampliar a compreensão do que é um livro, porque não é só o que nasceu com Gutemberg. É também oralidade, como nas batalhas de slam”, disse Lucas Padilha, secretário municipal de Cultura.
Em 11 de abril, um evento de lançamento da marca do projeto — um livro aberto nas cores roxo e rosa, em formato que remete à silhueta do Pão de Açúcar — reuniu no Real Gabinete Português de Leitura, no centro da cidade, autoridades como a ministra da Cultura Margareth Menezes e o prefeito Eduardo Paes, indicando que a iniciativa deve envolver do governo federal ao municipal.
Espelho do país
Se por um lado este 23 de abril é um dia de celebração, por outro é também o início de uma contagem regressiva. Afinal, o que é possível fazer em um ano, tempo em que o Rio será a Capital Mundial do Livro?
Maria Isabel Werneck, secretária-executiva do projeto, foi conhecer as iniciativas de outras cidades que receberam o título — antes de Estrasburgo, a escolhida foi Acra, em Gana, e antes dela a mexicana Guadalajara — para entender como o Rio pode ser bem-sucedido. “A Unesco estabelece um objetivo que parece simples, que é fomentar o hábito da leitura, mas [isso] exige consistência. As cidades escolhidas são obrigadas a implementar programas efetivos, identificar onde há carência de iniciativas, o que pode ser aprimorado e que novas medidas devem ser implementadas”, explica. “Por isso, o mais importante é conseguir deixar políticas públicas duradouras como legado.”
É difícil mensurar o impacto que o ano de atividades no Rio pode ter, inclusive em termos nacionais. Mas há motivos para o otimismo. Kin Guerra, da Solisluna, editora há 32 anos em atividade em Salvador, vê a chance de se debater a importância da formação de leitores em mais esferas da sociedade. “É uma oportunidade linda. O Rio é uma das cidades mais bonitas do mundo, e acredito que sem resolver o Rio não se resolve o Brasil. É, de certa forma, um espelho do país.”
É difícil mensurar o impacto de um ano de atividades, mas há motivos para o otimismo
A nova Capital Mundial do Livro também entra para uma rede de cooperação internacional formada por cidades que já estiveram no posto, como Buenos Aires, Nova Déli, Alexandria e Beirute. Pensando nas trocas literárias, foi criada uma caixa com livros de países de língua portuguesa, em geral laureados nos prêmios Oceanos e Camões, com curadoria capitaneada pela Academia Brasileira de Letras.
Tal caixa será aberta e circulará em vários espaços da cidade. Mas, por enquanto, não conta com obras brasileiras — elas só serão incorporadas à caixa que será enviada em 2026 para Rabat, no Marrocos, a próxima capital escolhida pela Unesco. A ideia, segundo Padilha, é mostrar que a literatura colabora para a diluição das fronteiras, e não para a afirmação delas.
Continua lendo?
Dados recentes mostram que há motivos para acreditar no poder da literatura — ou que, ao menos, a grande maioria das pessoas valoriza a leitura. Uma pesquisa conduzida ano passado pela consultoria JLeiva Cultura & Esporte, por exemplo, abordou 1.500 pessoas na capital fluminense e 67% delas afirmaram que a leitura de livros é seu maior hábito cultural (em segundo lugar, com 57%, apareceu a ida ao cinema).
Ainda assim, não são poucos os indícios de que o Rio pode até continuar lendo, conforme o slogan, mas poderia ler muito mais. Para se ter uma noção, a cidade contava com 204 livrarias em 2017. O número caiu para 126 em 2025. A Associação Estadual de Livrarias (AEL-RJ), que faz o levantamento de lojas do ramo, promete uma versão atualizada do Guia de livrarias da cidade do Rio de Janeiro para este ano comemorativo, com apoio da Secretaria Municipal de Cultura e do Sindicato Nacional dos Editores de Livro (SNEL).
Eventos literários e ações voltadas ao livro e à leitura vão se espalhar pela cidade
Claro que o cenário atual conta com forte concorrência das plataformas digitais de venda de livros. Mas, por isso mesmo, um dos focos da prefeitura é valorizar os espaços físicos. “As livrarias têm um valor que a plataforma digital não tem, que são os livreiros. Por isso, nosso objetivo é permitir que elas possam ser consideradas pontos de cultura, como de fato são. Afinal, esses agentes são produtores culturais”, diz o secretário Padilha. “Assim, as livrarias poderão se candidatar mais aos editais de fomento.”
Dono da livraria Belle Époque, no Méier, zona norte do Rio, Ivan Costa já ostenta o título de ponto de cultura desde o fim do ano passado. Batalhou por isso não apenas por conta dos editais. “Ajuda a ter reconhecimento por fazer coisas que a maior parte dos livreiros fazem: eventos de lançamento, clubes do livro, shows de bandas independentes, bate-papo com escritores”, enumera ele, que nesta quarta (23) promete fechar a rua para mais uma edição da Feijoada de São Jorge.
Ivan é também vice-presidente da AEL-RJ e tem participado dos eventos do Rio Capital Mundial do Livro. “Tem tudo para ser um ano bom. Os livreiros precisam estar unidos em busca de soluções. Estamos cobrando a prefeitura, que trouxe o evento para a cidade e está demonstrando real vontade de promover ações duradouras, que fiquem para além deste ano”, pontua. “Queremos que as livrarias tenham apoio para produzir feiras literárias nos seus bairros, sobretudo as da zona norte e do subúrbio. A pessoa sai para comprar uma capinha de celular e dá de cara com um livro, isso é superimportante”, explica o livreiro, partindo de sua própria experiência — ele começou vendendo no chão e depois migrou para uma bicicleta, antes de abrir uma loja de rua.
Dono da Folha Seca, livraria que tem como principal chamariz se dedicar a temas cariocas, Rodrigo Ferrari espera que a chancela ajude a valorizar esse tipo de negócio. “Toda iniciativa voltada para formação de leitores deve ser celebrada. Estamos animados com esse ano comemorativo, planejando eventos que fortaleçam ainda mais a conexão dos livros com o Rio”, diz. “A Folha Seca foi fundada há 27 anos pensando na cidade. O fato é que o Rio tem uma presença muito forte na literatura.”
Das ruas ao TikTok
Não só as livrarias estão bolando eventos especiais. Entre os dias 25 e 27 de abril, por exemplo, o Jardim Botânico vai espalhar obras pelo seu arboreto, para doação. A prefeitura também realizará ações desse tipo, com balcões de troca de livros no Terminal Gentileza, em estações do metrô e em trens da Supervia. Haverá ainda a Book Parade, com obras de arte inspiradas em literatura espalhadas pela cidade, e a Academia Editorial Júnior, para formação de jovens editores.
A Bienal do Livro terá sua edição de 2025 iniciada mais cedo, em junho (a anterior, de 2023, aconteceu em setembro), e contará com atrações especiais como uma roda gigante literária. Outras feiras e festas literárias, como a de Paraty e a de Santa Teresa, também planejam maneiras de valorizar o título de Capital Mundial do Livro. Já o Paixão de Ler, tradicional festival da capital, terá uma espécie de virada cultural: 24 horas de atividades, no Aterro do Flamengo. “A ideia é que esse tipo de iniciativa entre para o calendário da cidade, assim como a Noite com Livros começou em Madri quando a capital espanhola foi Capital do Livro”, conta Lucas Padilha.
A Secretaria de Cultura do Rio também vai trazer escritores estrangeiros, como o português Valter Hugo Mãe, para palestras em equipamentos municipais, e pretende patrocinar a reedição de livros fora de catálogo, assim como edições estrangeiras de autores brasileiros, como Luiz Antonio Simas e Ruy Castro. Além disso, o Jabuti, uma das premiações literárias mais importantes do país, terá uma edição especial na cidade, e ainda vai promover debates entre autores e a divulgação internacional de obras laureadas.
Já no universo virtual, o Rio firmou parcerias com o TikTok e a Audible (plataforma de audiolivros e podcasts). A ideia é estimular booktokers a falar de livros e espaços literários da cidade, além de promover a formação de atores e atrizes para a gravação de novos audiolivros.
Matéria na íntegra: https://quatrocincoum.com.br/reportagens/bagagem-literaria/por-um-rio-que-leia-mais/
24/04/2025