Redação da revista Manchete, no Rio, fins de 1971. O jovem redator recebeu um artigo gigantesco de uma colaboradora, que ele tinha de resumir para fazê-lo caber no espaço. Pelo adiantado da hora, meteu-lhe a caneta vermelha, matando páginas inteiras com grandes xis em diagonal. Não havia tempo para cortes cirúrgicos. O diretor Justino Martins concordou, era aquilo mesmo. Mas o artigo era uma encomenda do poderoso patrão, Adolpho Bloch. Este se indignou diante das páginas xizadas. A autora era uma famosa escritora, mulher de um ainda mais famoso escritor. O jovem redator era eu.
Adolpho cavalgou furioso até à Redação, fazendo tremer as ripas de cedro do piso, e, de pé, à nossa frente, passou-nos uma espinafração daquelas que só os veteranos jornalistas conheceram —hoje, ele seria preso por "assédio moral". Com sua voz de baixo profundo, chamou-nos de burros, cretinos e incompetentes. Nós o ouvíamos de orelhas murchas. Mas o redator na primeira fila diante de Adolpho era Cicero Sandroni. Antes que eu pudesse me acusar pelo crime, Cicero se levantou —enorme, pausada e pesadamente—, com a intenção de deixar a sala em protesto.
Adolpho não entendeu assim. Achou que Cicero estivesse se levantando para agredi-lo e, apavorado, saiu correndo. Foi pândego: o homem que provocava terror em seus empregados fugia para sua sala, aos resfôlegos, com medo de um agressor imaginário. O doce e amável Cicero sentou-se de novo e a paz voltou a reinar. Mas, dali a dias, haveria o almoço que, às vésperas do Natal, Adolpho oferecia aos funcionários mais graduados, como nós. Liderados por Cicero, não comparecemos ao almoço —para desgosto de Adolpho, que, contra todas as aparências, tinha um quê de sensível.
Cicero Sandroni morreu nesta terça (17), aos 90 anos. Deixou um legado como jornalista, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, da qual foi grande presidente.
Deixou também um legado humano. Era sincero amigo de seus amigos. Meu, inclusive, que tive esse privilégio por 58 anos.