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ABL na mídia - Estadão - Ana Maria Gonçalves faz história e é eleita a primeira mulher negra na Academia Brasileira de Letras

 

Oitenta anos. Esse foi o tempo que a Academia Brasileira de Letras levou, desde a sua fundação, em 20 de julho de 1897, para eleger a primeira mulher. A escolhida para ocupar a cadeira de número 5, que pertenceu a Cândido Motta Filho, foi a jornalista e escritora cearense Rachel de Queiroz no dia 4 de agosto de 1977.

Quarenta e oito anos depois, nesta quinta, 10, a ABL elegeu a primeira mulher negra: a escritora, dramaturga e roteirista mineira Ana Maria Gonçalves. A autora de Ao Lado e À Margem Do Que Sentes Por Mim (independente, 2002) e Um Defeito de Cor (Record, 2006) disputou a vaga, segundo o site oficial da instituição, com outros 13 candidatos: dez homens e três mulheres.

Ela recebeu 30 dos 31 votos de acadêmicos. Concorreram com ela Eliane Potiguara, que recebeu o outro voto, Ruy da Penha Lobo, Wander Lourenço de Oliveira, José Antônio Spencer Hartmann Júnior, Remilson Soares Candeia, João Calazans Filho, Célia Prado, Denilson Marques da Silva, Gilmar Cardoso, Roberto Numeriano, Aurea Domenech e Martinho Ramalho de Melo.

“Estou muito feliz com o resultado e, principalmente, por começar a fazer parte de uma instituição como a ABL, que lida com a coisa mais importante na minha vida: a literatura”, disse Ana Maria ao Estadão, poucos minutos após o anúncio.

“Além de ser um motivo para comemorar, é também um motivo para nós começarmos a pensar o que significam esses primeiros, esses únicos. Numa sociedade brasileira onde as mulheres negras são a maioria do extrato social, por que só agora?”, refletiu ela.

A escritora afirmou que espera que sua eleição seja uma possibilidade de abertura e um exemplo para que outras mulheres negras também se candidatem - algo que ela confessa que não pensava até poucos meses atrás.

“Uma das coisas mais cansativas nessa história das mulheres, e principalmente das mulheres negras, é esse pioneirismo. Essa coisa de ser o único em um lugar traz um peso muito grande”, afirmou.

Ana Maria citou a questão da inteligência artificial na produção de livros como uma das preocupações de seu trabalho na ABL: “Quero começar a pautar essas novas possibilidades de uso da língua portuguesa de uma maneira a se preservar o trabalho dos escritores e dos artistas.”

“Eu também gostaria muito de levar um público para a ABL que não se via representado lá dentro”, disse a escritora. “Para que mais do que se ver representado, esse público também possa estar lá, presencialmente”, finalizou.

O que representa para a literatura brasileira ter uma escritora negra na ABL?

“Sempre digo que, para uma escritora negra, reparação é ser reconhecida e exaltada em vida. Logo, ter uma de nós ocupando uma cadeira da ABL é de extrema importância, pois reforça a necessidade de olhar para a produção intelectual e o resgate da memória de quem sempre esteve na base desse País”, afirma a poeta e compositora Mel Duarte.

“As mulheres negras representam o maior grupo populacional do Brasil. É incoerente não ocuparmos certos espaços de poder e importância. Se não estamos lá, é porque quem tem acesso não larga o osso”, completa a organizadora do livro Querem Nos Calar: Poemas Para Serem Lidos em Voz Alta (Planeta do Brasil, 2019).

O que representa para a literatura brasileira ter uma escritora negra na ABL? “Prefiro alterar a pergunta: o que representa para a ABL a eleição de uma escritora negra?”, responde Vanessa Ribeiro Teixeira, doutora em Letras pela UFRJ.

“No momento presente, reduz-se a distância entre a produção literária do nosso tempo e a casa institucional que deveria contemplá-la. Numa perspectiva histórica, reconhece-se, finalmente, o lugar de destaque devido à escrita de mulheres negras, herdeiras de Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista negra não só do Brasil, mas da América Latina”, afirma Teixeira, referindo-se à autora do romance Úrsula (1853).

Conceição Evaristo também já concorreu

Não foi a primeira vez que uma escritora negra concorreu a uma vaga na ABL. No dia 30 de agosto de 2018, a escritora mineira Conceição Evaristo tentou se eleger, mas não conseguiu. Na disputa pela cadeira de número 7, vazia desde a morte de Nelson Pereira dos Santos, Evaristo obteve um único voto. Cacá Diegues, o favorito, conquistou 22 e Pedro Corrêa do Lago, 11.

De nada adiantaram, entre outras iniciativas populares, a campanha no antigo Twitter usando a hashtag #ConceiçãoEvaristo na ABL e uma petição online com 40 mil assinaturas.

“Minha personalidade é rancorosa demais para perdoar o que fizeram: é como se tivessem rejeitado a minha avó. Mesmo depois da eleição do Gil, meu coração não se acalmou”, admite a jornalista e escritora Ana Paula Lisboa.

‘Não é cota’

“A eleição de Ana Maria Gonçalves não é cota, muito menos favor. É um lugar digno de uma escritora que tem um dos livros mais importantes da literatura brasileira”, prossegue a autora que tem textos publicados nos livros Olhos de Azeviche (Malê, 2017), Árido – Histórias de Outras Vidas Secas (Rocco, 2024) e Nossos Passos Vêm de Longe (Nova Fronteira, 2025). “A ABL precisa mais da Ana Maria Gonçalves do que a Ana Maria Gonçalves precisa da ABL.”

“Não se pode esvaziar a presença de Ana Maria Gonçalves por ser negra. É uma das maiores escritoras vivas do Brasil e seu livro, Um Defeito de Cor, alcançou espaço ímpar na literatura brasileira contemporânea”, pondera a escritora Cidinha da Silva.

“Setores majoritários da ABL podem tentar se manter alheios aos grandes debates que clamam por transformações sociais, mas seria de bom alvitre nos responder: por que Ana Maria Gonçalves, provavelmente, foi convidada, e a candidatura de Conceição Evaristo foi rechaçada? Por que Gilberto Gil pode ser membro da ABL e Martinho da Vila, não? Merecemos respostas”, diz a autora de Parem de Nos Matar (Pólen, 2019), Vamos Falar de Relações Raciais? – Crônicas para Debater o Antirracismo (Autêntica, 2024) e Só Bato em Cachorro Grande, do Meu Tamanho ou Maior: 81 Lições do Método Sueli Carneiro (Rosa dos Tempos, 2025).

No dia 2 de junho de 2010, Martinho da Vila concorreu à cadeira de número 29, que pertenceu a José Mindlin, mas perdeu a disputa para Geraldo Holanda Cavalcanti. Somados os votos, Cavalcanti recebeu 20; Eros Grau, 10; Muniz Sodré, oito; e Martinho da Vila, nenhum.

Com a eleição de Ana Maria Gonçalves, a ABL passa a ter três acadêmicos negros: os outros dois são Domício Proença Filho, eleito em 2006, e Gilberto Gil, em 2021.

13ª mulher imortal

Ana Maria Gonçalves será a 13ª mulher a vestir o fardão da ABL. Depois de Rachel de Queiroz, eleita em 1977, vieram Dinah Silveira de Queiroz (eleita em 1980), Lygia Fagundes Telles (1985), Nélida Piñon (1989), Zélia Gattai (2001), Cleonice Berardinelli (2009) e Heloísa Teixeira (2023).

Atualmente, a instituição tem cinco acadêmicas: Ana Maria Machado (2003), Rosiska Darcy de Oliveira (2013), Fernanda Montenegro (2022), Lilia Schwarcz (2024) e Miriam Leitão (2025).

Apenas duas chegaram a presidente: Nélida, em 1997, e Ana Maria Machado, de 2012 a 2013.

“A eleição de uma escritora negra representa um importante – ainda que tardio – marco histórico e simbólico”, afirma Michele Asmar Fanini, doutora em Sociologia pela USP e autora da tese Fardos e Fardões – Mulheres na Academia Brasileira de Letras.

“A trajetória literária e social de Ana Maria Gonçalves como mulher negra e escritora entrelaça dois marcadores sociais que, historicamente, se converteram em tabus para a ABL: o gênero e a raça, evitados, tanto quanto possível, sob a justificativa de que a instituição seria um espaço neutro e refratário a ditos ‘proselitismos’”.

Ainda não há previsão de quando será realizada a cerimônia de posse da recém-eleita Ana Maria Gonçalves.

A trajetória de Ana Maria Gonçalves

Ana Maria Gonçalves nasceu no dia 13 de novembro de 1970, no município de Ibiá, a 324 quilômetros de Belo Horizonte (MG). Na infância, leu de tudo: de Capitães de Areia (1937), de Jorge Amado, a O Exorcista (1971), de William Peter Blatty. Antes de ganhar a vida como escritora, trabalhou por 13 anos como publicitária.

Quando tinha 29 anos, resolveu fazer seu obituário. Não gostou do que leu e resolveu mudar de vida. Foi quando, inspirada pelo livro Bahia de Todos os Santos (1938), de Jorge Amado, trocou a agitada São Paulo pela pacata Ilha de Itaparica. Seu romance de estreia, Ao Lado e À Margem Do Que Sentes Por Mim, teve tiragem limitada, de apenas mil exemplares, vendidos pela própria autora na internet. Não há cópias disponíveis sequer na Estante Virtual, o maior sebo virtual do País.

O romance seguinte, Um Defeito de Cor, levou cinco anos para ficar pronto. Foram dois de pesquisa, um de escrita e dois de reescrita. Ao todo, o livro, inspirado na história de Luíza Mahin, uma das líderes da Revolta dos Malês (1835) e mãe do abolicionista Luiz Gama, foi reescrito 19 vezes.

Publicado pela Record, a obra conquistou leitores famosos, como o humorista Millôr Fernandes, o ator Lázaro Ramos e o presidente Luís Inácio Lula da Silva. Entre outros méritos, o romance histórico de 952 páginas ganhou o Prêmio Casa de Las Américas, virou exposição no Museu de Arte do Rio (MAR), inspirou o samba-enredo da Portela e chegou a ter os direitos vendidos para a TV Globo. Em sua 44ª edição, Um Defeito de Cor já vendeu cerca de 180 mil exemplares.

“Não queremos que a eleição da Ana Maria Gonçalves seja um ‘cala-boca racializado’. Queremos mais escritoras negras naquele espaço de notoriedade positiva e em todos os outros, não apenas uma”, enfatiza Cidinha da Silva. “Representatividade é importante, porque, quando vejo uma pessoa igual a mim em lugares de poder, de comando, de status sociopolítico e cultural reconhecido e valorizado, penso que eu e pessoas parecidas comigo também podem ocupar e desfrutar desses espaços”, prossegue.

A jornalista, escritora e roteirista Eliana Alves Cruz concorda. “Ter uma autora negra ali não é nada. Meu medo é que a instituição passe o ferrolho para outras autoras negras depois que a Ana Maria Gonçalves entrar. Não podemos esquecer que o B de ABL é de Brasil”, avisa a autora de Água de Barrela (Malê, 2018), O Crime do Cais do Valongo (Malê, 2018) e Solitária (Companhia das Letras, 2022).

Eleita a primeira mulher negra da ABL, que outros segmentos da sociedade deveriam ser representados na instituição fundada por Machado de Assis? “Todos!”, responde Vanessa Ribeiro Teixeira. “O amplo cenário das letras brasileiras é tão diverso quanto a nossa sociedade. E isso precisa ser reconhecido, celebrado, representado.”

“Quanto mais plural, melhor”, acrescenta Eliana Alves Cruz. “É espantoso que, em 2025, ainda tenhamos uma instituição tão majoritariamente branca e masculina. Falta muita gente ali. Por que não preencher aquelas cadeiras com outras formas de pensar, de narrar, de falar? Seria bonito se a gente tivesse o Brasil representado na ABL”, finaliza.

Matéria na íntegra: https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/ana-maria-goncalves-faz-historia-e-e-eleita-a-primeira-mulher-negra-na-academia-brasileira-de-letras/

11/07/2025