DISCURSO DO SR. RIBEIRO COUTO
SENHORES Acadêmicos,
Não ignoro que a vossa malícia – e talvez a vossa experiência – não costuma tomar muito ao pé da letra as confissões de humildade em posses acadêmicas. Será assim tão rara a espécie dos convictos do seu desvalimento? Pode haver, e disso desejaria ser exemplo, os que aqui chegam ainda meio incrédulos, confusos da aventura, extasiados da travessia para a qual, poucas eram as forças, pouco era o engenho, pouca era a arte.
Por isso mesmo, ao me acolherdes nesta Casa tenho a impressão de que a vossa hospitalidade também é castigo. Passando a viver entre vós, a conhecer de mais perto as vossas virtudes e a vossa sabedoria, meu ambicioso contentamento se mistura de um pouco de aflição, pelo erro inefável de repetir o ignorante entre os doutores.
Entretanto, como vos dignastes abrir as portas a alguém que uma certidão de registro civil insinua ser o mais moço de vós, parece que largo tempo terei, vivendo convosco, de convosco aprender.
A refletir na honra que me toca, apraz-me demorar o sentido no elevado prestígio de que goza o vosso grêmio. Foi obra do vosso trabalho e dos que vos precederam. Não se trata de um prestígio outorgado somente pela grei literária, mas de um prestígio nacional, com ressonância em todas as camadas sociais do país. De há muito que a Academia deixou de ter, como no tempo da Revista Brasileira, aquele ar fechado de reunião de família, quando se conversa baixinho sobre antigos parentes, antigas festas de aniversário, antigos lutos. Não só nas metrópoles intelectuais, como em remotos pontos do Brasil, milhões de olhos estão fitos nas vossas obras e, ai de vós! nas vossas eleições. Quanto a estas, tendes sempre presente o fabulista, que pôs na boca do moleiro, além daquele delicioso “parbleu”, o conceito célebre:
... est bien fou du cerveau
Qui prétend contenter tout le monde et son père.
Se Joaquim Nabuco pudesse estar ainda hoje convosco, e visse o interesse que despertam as eleições desta Casa, havia de sentir-se feliz. Seu objetivo era “popularizar as letras”. Por isso mesmo, desejava aqui dentro alguns “grands Seigneurs de todos os partidos”. Cumpriram-se, em proveito da Academia, os votos que ele tão finamente exprimiu na carta a Machado de Assis, escrita de Londres, em 1901: “V. sabe que eu penso que a Academia deve ter uma esfera mais lata que a literatura exclusivamente literária, para ter maior influência. Nós precisamos de um certo número de grands Seigneurs de todos os partidos. Não devem ser muitos (acrescentava com prudência), mas alguns devemos ter, mesmo porque isso populariza as letras.”
Do prestígio popular da Academia tive uma prova tocante, há cerca de nove anos, quando promotor de uma comarca de roça, no Estado de São Paulo. A cidadezinha enternecia-me. Ali estivera, três lustros antes, ocupando o mesmo cargo, nada menos que o bacharel José Bento Monteiro Lobato. Já era o grande escritor dos Urupês e de outros excelentes livros, entre os quais as Cidades Mortas, em que essa mesma comarca nos aparece com o pseudônimo arguto de Oblívion. Já Rui Barbosa, em 1919, com a trombeta da sua eloqüência, perguntara à multidão do Teatro Lírico: “Conheceis o admirável escritor paulista?” Rui Barbosa, entretanto, não valia por um veredictum literário, e vereis por quê. Os jornais noticiavam que o Sr. Monteiro Lobato se apresentava candidato à Academia. Uma tarde, no cartório, o mais velho escrivão do foro local, pessoa muito inteligente no seu ofício, estava a aprontar-me uns autos para o preguiçoso “Nada a opor”, da promotoria, quando, interrompendo de súbito o serviço, ajeitou os óculos no nariz e cravou em mim uns olhos de escandalizada surpresa:
– Me diga uma coisa com sinceridade: o nosso Dr. Monteiro Lobato tem competência para a Academia Brasileira?
* * *
O primeiro ocupante desta Cadeira, Guimarães Passos, encerrou uma época da cidade: o ciclo romântico da miséria por sistema e da confidência amorosa na confeitaria. Paulo Barreto, que lhe sucedeu em 1910, inaugura a nova era, a era das transformações materiais e da pressa, a era da vertigem. No seu discurso de posse, fazendo o elogio de Guimarães Passos, parece dizer, com impertinência e alarido, o ofício fúnebre da boêmia. É preciso agir com entusiasmo “no esplêndido espetáculo”.
Vindo em seguida ao exuberante vencedor das alegres canseiras do trabalho, o discreto Constâncio Alves foi uma advertência. Há lugar para todos na tumultuosa vida moderna: até para os mansos filósofos desencantados. Os professores de energia e de otimismo precisam da vizinhança irônica dos mestres de cautelosa mansidão, que não saem de casa sem um guarda-chuva.
A biografia de Constâncio não é longa. Nasceu na Bahia, em 1862. Ali se formou em Medicina, vinte e três anos depois. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1933. Entre as datas extremas, põe-se apenas isto: escreveu para jornais e foi empregado de uma biblioteca pública.
Não exerceu a clínica. Não tinha jeito para tratar das enfermidades do corpo, ele, tão identificado com a vida do espírito, a ponto de parecer sempre esquecido da sua pessoa física. Entretanto, a renúncia dos médicos ao exercício da medicina nunca foi coisa que a ingrata humanidade lamentasse com exagerada pena...
De 1883 a 1890, Constâncio fez parte da redação do Diário da Bahia. Transferindo-se para o Rio de Janeiro, trabalhou desde logo no Jornal do Brasil, que Rodolfo Dantas fundara, e ali se destacou imediatamente, apesar dos grandes vultos que o rodeavam: Joaquim Nabuco, Gusmão Lobo, Sancho de Barros Pimentel. Passou, em 1896, para o Jornal do Commercio, onde ficaria até a data da sua morte. Nunca lhe aprouve assinar o nome. Era: C. A. Ultimamente, apenas a primeira inicial.
O emprego da Biblioteca Nacional, para onde entrou em 1895, representou para Constâncio um porto de chegada. Sua paixão foi esta e somente esta: ler. Conhecer tudo. A Biblioteca Nacional era a terra encantada. Foi ali que cresceu, dentro dele, a imensa harmonia silenciosa, que o fez feliz na pobreza, conformado na surdez e no isolamento.
Não devia ter sido muito diferente, na mocidade, a imagem que dele nos deu há pouco Humberto de Campos: “... pequeno, trajando o seu antiqüíssimo e invariável fraque, um maço de jornais amarrotados debaixo do braço, as costas ligeiramente curvas, a cabeça estendida para diante, como a das tartarugas, que espreitam, a marchar lentamente, a arrastar imperceptivelmente os pés, sem fazer o mais ligeiro ruído, como as sombras que se estampam nos muros.” A pintura não difere da que, já dez anos antes, fizera Félix Pacheco, na própria presença do modelo, no discurso com que o recebeu aqui. Terá sido assim, portanto, a sua vida inteira: retraído, tímido. “Quem vos encontrar na cidade (é Félix Pacheco quem fala), meio encolhido e meio curvo, os ombros estreitos metidos em fraque talvez preto e coberto invariavelmente do capote, se o termômetro está abaixo de 30°, à cabeça um coco também quase preto, a expressão geral sem nenhum traço deselegante de boêmia antiga, balanceando um bocadinho o andar vagaroso, com jornais amassados ou brochuras; e livros apertados no braço esquerdo, o direito empunhando um indefectível guarda-chuva, que não previne nada contra o seu contemporâneo, o dilúvio, dirá logo: ali vai um tímido.”
Já Rui Barbosa, entretanto, escrevera dele: “... tipo de qualidades generosas e brilhantes, que uma camada exterior de simplicidade e melancolia oculta aos que lhe não procurarem, sob a crosta da negligência e timidez, as riquezas escondidas.” Era, para Rui Barbosa, “o escritor de raça, em quem o espírito, a distinção, o estilo, o bom senso, o tacto dos mestres da prosa moderna se casam com a paciência, a curiosidade, a penetração, o indefesso labor e os hábitos meditativos de um beneditino”.
Joaquim Nabuco também não se enganara. Quando se tratou (nesta Academia, de dar sucessor ao Visconde de Taunay, escreveu a Machado de Assis, a 10 de fevereiro de 1899: “O Loreto disse-me anteontem que na Revista (Revista Brasileira, então sede da Academia), onde não vou há muito, falava-se em Arinos e Assis Brasil. Eu disse-lhe que minha idéia era o Constâncio Alves... mas, se V. não pensa que o Constâncio tem a melodia interior, a nota rara, que eu lhe descubro, submeto-me ao mestre.”
Constâncio Alves andava então pelos trinta e sete anos. Não publicara livro nenhum. Compunha folhetins e artiguetes. Os assuntos, muitas vezes, eram ingratos: frívolos faits divers, acontecimentos de momentânea repercussão. Nabuco, porém, não se iludia. Nas linhas jornalísticas do C. A., descobria a nota rara, que revela as projeções profundas de uma vida mais complexa, mais rica de planos e de mistério.
A timidez de Constâncio Alves não era fraqueza: fraco ou pusilânime nunca foi. Pelo contrário, castigava rudemente o adversário quando discutia. Tinha chistes que valiam como chicotadas sibilantes. À volta do fim do século, brigando com Carlos de Laet, ficou famosa a sua polêmica. E Carlos de Laet era o homem mais mordaz do seu tempo.
Félix Pacheco, ao receber Constâncio na Academia, teve a malícia de ressuscitar as hostilidades de outrora entre o novo acadêmico e aquele que era então o próprio presidente da Casa, e nesse venerável caráter estava presente à solenidade. Mostrou no seu discurso como Carlos de Laet, mesmo no aceso da batalha, sensível à sedução de Constâncio, não renegava de gabar-lhe as setas do carcaz: chistosos artigos, espirituoso C. A., variações com a costumada perícia, variações no violino em que é mestre... Essas e quejandas alusões lisonjeiras vinham sempre nas ordens do dia do inimigo.
O inimigo de antigamente presidia à sessão, reconciliado. Fazia tantos anos!
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O Constâncio polemista, de há longo tempo não existia mais. Se o recordo, é tão-só para sublinhar este ponto: essa criatura triste e enfermiça, que sugeria nunca ter conhecido mocidade, também se afoitou em recontros e embates, e com galhardia; aliás, à maneira de um lutador gentil, que preferisse a volúpia dos pequenos golpes ferinos, aos prazeres pesados da demolição mortal. A polêmica não era a sua vocação. Logo havia de acomodar-se, de ficar a rir a um canto, a rir baixinho, com uma perversidade inocente, quase angélica.
Não escrevia para “toda gente”, para o monstro necessário e multiforme que lê nos bondes, que devora a secção policial e a página de esportes. Escrevia para alguns leitores delicados e fiéis. Ele tinha, como Stendhal, “the happy few”.
Sua obra de escritor, esparsa em conferências e, sobretudo, em inumeráveis folhetins, havia de ser como a sua vida: cheia de pudor. Não se dá à primeira vista. Faz-me pensar em certas casas antigas, de nobres linhas imperiais, que se escondem atrás do arvoredo de um parque. Os guarda-portões montam sentinela, de ar severo. Nós, entretanto, sabemos que são guarda-portões de porcelana. O parque está abandonado e podemos invadi-lo. Oh! muito de mansinho, para não assustar os pássaros que cantam esquecidamente.
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Os amigos de Constâncio foram poucos, pouquíssimos, como insinuou Afrânio Peixoto, ao escrever do modesto enterro atropelado: “Ao menos três amigos ele teve até o fim...” Será preciso que esses amigos recolham o anedotário do morto, que dará para um livro no gênero dos de Léon Treich: L’esprit de Constâncio Alves.
O letrado enciclopédico era de uma bonomia encantadora. A graça começava naquele aspecto sorumbático, desabrochando em surpresas: de cultura, de bom gosto, de finesse, de malícia. Acontecia como nas histórias antigas: o bicho feio estava na beira da estrada; as crianças jogavam pedras; o menino amoroso chegou perto e passou a mão por cima, devagarzinho; então, saiu voando um príncipe encantado, que levou o menino para o seu reino e lhe deu um tesouro.
Foi essa, pelo menos, a aventura de um candidato à Academia, que deixou para a véspera da eleição as últimas visitas, as que se lhe afiguravam enfadonhas, a acadêmicos suspeitos de não ter palestra interessante. Tomou um táxi à noitinha, depois do jantar, na certeza de que liquidaria o trabalho em poucos quartos de hora: cinco minutos aqui, dez minutos ali e assim por diante. Pareceu-lhe de bom alvitre começar por Constâncio, que não conhecia nem mesmo por ouvir dizer. Chegou, e Constâncio, na tranqüilidade do gabinete pobre, entre os velhos livros amados, começou a conversar lentamente, acerando as pontas da ironia nos tropeções da gagueira. Pouco a pouco, foi levando o candidato ao reino das encantações. Adeus, ponteiro e quadrante! O candidato esqueceu-se de tudo, esqueceu-se da própria Academia, e saiu de lá alta noite. Estavam perdidas as outras visitas. Perdida, quem sabe, também a eleição. Para cúmulo, havia o táxi, com o chofer adormecido: marcava mais de cem mil réis.
Por escrúpulo, não devo falar muito desse Constâncio, do Constâncio anedótico. Quando não se foi testemunha de vista de uma bela vida como a sua, não se tem o direito de arriscar a pintura do retrato carregando nas tintas secundárias. O episódio acima contado, porém, é verdadeiro: foi o próprio candidato que mo transmitiu. Por isso, escapo à censura de Constâncio, quando defendeu de certas anedotas fantasiosas a memória de Laurindo Rabelo: “Os homens da natureza e da sorte de Laurindo, são como cabides em que qualquer pessoa pendura a sua anedota. E anedotas há que passam de celebridade em celebridade, como roupas de aluguel, de corpo em corpo.”
Das respostas espirituosas, dos seus imprevistos, das suas esquisitices e dos seus encantos, falem os que com ele conviveram. Do agudíssimo instinto da sátira, que era típico do seu temperamento, basta-me o que ficou espalhado ao longo de toda a obra escrita, como um leit-motiv do cepticismo, espécie de guiso sutil a perturbar, de propósito, a harmonia profunda, a melodia interior.
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Que delicioso livro Constâncio Alves teria dado se quisesse, como Sophie Gay, fazer uma Physiologie du Ridicule! Sua sátira não era agressiva: era um avesso do desencanto, a percepção do ridículo dos homens. Faz pensar no que Renan, seu mestre, escreveu do imperador Adriano: “Toute recherche aboutissait pour lui à une plaisanterie, toute curiosité à un sourire.” Poderia, por isso, murmurar como o outro, à hora da morte:
Animula vagula, blandula...
A morte, porém, colheu-o de sopetão. Estava lendo, sentiu-se mal, ergueu-se, rolou.
A última imagem que levou do mundo foi esta: a página de um livro.
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A vida de Constâncio Alves passou-se inteira no paraíso da leitura. Nesse território transcendente experimentou a presença do mundo antigo e do mundo moderno, sem necessitar, quanto àquele, de tocar em ruínas ilustres, nem de sentir, quando a este, a exasperada agitação das cidades. Ao fixar-se na filosofia de Schopenhauer, que foi a fonte do seu pessimismo romântico, já outras filosofias lhe tinham passado diante dos olhos: de Platão a Santo Agostinho, de Pascal a Kant. A poesia de todas as idades, desde a manhã virgem dos primeiros heróis gregos, até a meia-tinta confusa dos crepúsculos nórdicos, elevou dentro do seu coração o eterno murmúrio de sofrimento ou de alegria. Tudo ecoou dentro do seu peito, mas sem deixar ali – aves de pouso imponderável – a marca de nenhuma ambição, de nenhum apetite da matéria, de nenhum impulso muscular para o mal ou para o bem. Não teve outra voluptuosidade que não a do conhecimento abstrato. Era impossível que saíssem dos seus lábios estas palavras de André Gide a Nathanael: “Nathanael! Quando teremos queimado todos os livros? Não me basta ler que as areias são macias; eu quero que meus pés nus o sintam. Todo conhecimento que não foi precedido de uma sensação me é inútil.” As suas nourritures não foram terrestres. Ouviria com prazer a exclamação de Gide: “Amorosa beleza da terra, a eflorescência da tua superfície maravilhosa!”, mas não daria um passo para envolver-se dos seus contactos luxuriantes. Seu paraíso estava cheio de cores, de formas, de aromas e músicas: não precisava sair dele para receber, de cada frêmito, o êxtase da ventura.
A tal ponto preferia o mundo poético da imaginação, que confessou, em 1923, no jubileu de Miguel Couto, que “aprendeu os sintomas da peste de Atenas nos sombrios versos de Lucrécio” e “quando precisou de informações sobre a famosa epidemia de Florença, consultou o livro imorredouro de Bocaccio”.
Sua divisa poderia ter sido igualmente: “On se lasse de tout, moins de connaître.” Teria, porém, de acrescentar-lhe a resposta daquele sábio grego à espavorida população da cidade, que fugia carregando tesouros, à aproximação dos exércitos de Ciro: “ – Nada preciso levar; todas as minhas riquezas vão comigo.”
As únicas riquezas em que considerou foram essas, as da cultura e da beleza moral.
“Sabia tudo, porque lera e lia tudo”, escreveu dele Afrânio Peixoto. Entretanto, no segundo hemistíquio, assenta-lhe muito mal o verso de Mallarmé:
La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres.
porque nunca deu por findas as suas leituras.
Renan imaginou o purgatório “lieu mélancolique et charmant où ceux qui ont quelque peine correctionnelle à purger seront très bien pour attendre”. Se Constâncio Alves ali espera o cumprimento de alguma pena correcional, será com um livro aberto.
Hélas! Não lera ainda todos os livros. As suas curiosidades se abriam em vastos, infinitos panoramas. O “formigão de biblioteca” tinha apetites insaciáveis, a começar pelas enciclopédias de arte, de ciências e de letras, até a bibliografia minuciosa e exaustiva dos seus autores prediletos, que eram sempre dos maiores da humanidade. Todos os clássicos gregos e latinos, todos os historiadores, moralistas e poetas de antigas idades ou da idade contemporânea, que deixou aos montões na casinha do Cosme Velho, testificam os itinerários familiares do seu espírito. Possuía largas prateleiras de obras sobre certas figuras que elegera, por afinidades secretas ou pela admiração, como São Francisco de Assis, Dante, Shakespeare, Goethe e Renan. Na língua portuguesa, os velhos cronistas foram seus companheiros. Era, entretanto, entre a educada ironia de Eça de Queirós e a perversidade mansinha de Machado de Assis, que Constâncio respirava com delícia. Assim também é que ele via o mundo, no trajeto anônimo entre o lar e a repartição; esse trajeto que fazia pensando na leitura interrompida em casa e na que ia continuar no emprego.
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Em 1917, Constâncio escreveu uma das melhores páginas do seu humour, quando se ocupou de Paul Stapfer. Esse escritor francês, morto naquele ano, e já velho, sofria de uma obsessão: a mágoa de não deixar um grande nome. No seu estudo sobre as Réputations littéraires chegou a escrever, desabafando a angústia de viver metido numa cidade de província, a ensinar meninos: “Jamais le temps perdu ne se rattrape complètement, et, pour poser les fondements d’une gloire, il n’y a pas de temps plus utile, de temps dont la perte soit plus irréparable pour un auteur, que celui de sa vie présent. Toute réputation littéraire est une victoire sur l’inattention et l’indifférence naturelles des hommes: il devient extraordinairement difficile de gagner l’oreille du public, quand le principal intéressé n’est plus là pour la remplir du bruit de son nom et de son ouvrage.” Paul Stapfer morreu durante a guerra, e Constâncio, com um sarcasmo terrível, acha que ele “perdeu, assim, mais uma ocasião de ser mais conhecido do que era”, porque “a atenção do mundo estava voltada para as grandes matanças, e não reparava nos óbitos avulsos”.
Nessa missa profana, que Constâncio Alves disse com um ar demoníaco sobre o cadáver do confrade inquieto e infeliz, ele definiu toda a sua ética de letrado. Funcionário de uma biblioteca pública, podia falar com autoridade sobre o que chamou de “vulgar acidente” para um escritor: escrever livros que ninguém lê.
Natureza de tímido, Constâncio não quis arriscar-se. Esquivou-se à prova. Assinou a vida inteira C. A. e só publicou um livro – um único livro – para submeter-se à lei interna da Academia. Esse que viveu para as letras não pôde ser candidato enquanto não apresentou documentos regimentais. Só a isso devemos as Figuras, volume “suculento”, como disse Félix Pacheco, escolhendo com precisão o adjetivo necessário.
São apenas vinte e nove folhetins, tomados entre as muitas centenas que escreveu ao longo de mais de quarenta anos. O humorista não quis, porém, incluir no livro (apesar de conhecer a voracidade das traças) uma só página que não fosse inspiradora de respeito e admiração. O próprio epitáfio de Paul Stapfer consola: consola os autores desconhecidos, pelo exemplo ilustre do outro... As Figuras aparecem todas banhadas de claridades favoráveis. Constâncio foi buscar em sua obra esparsa o que de melhor escrevera sobre poetas, estadistas, sacerdotes, homens de meditação ou de ação, tudo que a eles se referisse com simpatia ou solidariedade. Parecia considerar-se em dívida: havendo tratado, no mundo real e principalmente no imaginário, com tantas figuras, cumpria-lhe um depoimento em favor do gênio humano. Ainda quando, numa página ou noutra, a sátira lhe move a pena, é para rir dos homens, mas não desses bem-amados autores e amigos. Cheios de comunicativo enlevo são, por isso, os capítulos sobre Machado de Assis, Raimundo Correia, Castro Alves, Joaquim Nabuco, Rodolfo Dantas, José Bonifácio, o Moço, Rio Branco, Ferreira Viana.
Mesmo que de Constâncio Alves não pudéssemos recolher senão esse livro, ainda assim o espólio seria precioso.
Sua ironia é saborosa quando faz o perfil de São Tomé, inculcando-o como um cândido precursor da ciência positiva. “Não era o incrédulo irredutível, mas o observador que deseja atingir a verdade pelo exame desconfiado, pela verificação dos sentidos, e principalmente do mais cauteloso e do mais seguro ou menos incerto: o tacto.”
Constâncio reclama para São Tomé a virtude de haver apalpado o corpo de Cristo na ressurreição e de ter, por isso, prestado à Igreja, com o seu testemunho, maior serviço que os outros apóstolos, convencidos apenas pela fé, sem o uso prudente das mãos indagatórias.
O leitor ortodoxo encontra heresia nessa página. Estará diante de um infiel? Será permitido falar de coisas sagradas com um sorriso zombeteiro?
Mais longe escreve que na alma do homem, para que este seja feliz, “deve haver sempre um inquilino sobrenatural”. A fórmula é vaga e dissimulada, mas, poucas linhas adiante, o leitor ortodoxo ficará menos assustado: Constâncio deseja que São Tomé proteja a religião contra os maus inquilinos, contra “a má colocação de crenças”. A seu ver, se os oradores sacros aconselhassem a devoção de São Tomé (santo sem clientela), muita gente deixaria de entregar-se a pitonisas, videntes, magos e quejandos. Comentando, então, o suicídio de uma senhora, impressionada com o terrível futuro vaticinado por uma cartomante, Constâncio imagina o que a infeliz teria ouvido do prudente São Tomé, se invocado na hora precisa: “Filha, vai se quiseres à casa da cartomante, mas não acredites no que ela te disser, guarda na memória o vaticínio e espera, sem pavor e sem contentamento. A dúvida que aguarda provas é destruidora de abusões. Empreguei-a mal, é certo, e fui punido. Aplicada, porém, ao que convém, traz sempre benefícios, e pode derrubar com um sopro os castelos que as adivinhas constroem com cartas. Filha, o baralho que elas manejam não é Evangelho. Eu, que duvidei do que disseram varões da mais alta seriedade, como eram os meus colegas, discípulos de Jesus, não posso permitir que creias sem exame em figurinhas ridículas como o Valete de Copas ou o Dois de Paus. Perde o dinheiro da consulta, mas não percas o juízo. Paga, mas vê, e, se souberes ver, não crerás nestas coisas.”
Será pura zombaria? O leitor ortodoxo, a quem estas linhas feriram como estiletes traiçoeiros, verá noutro capítulo que não há razão para sustos. A ferida foi superficial. Constâncio mesmo tratará de pensá-la, aplicando-lhe este retalho de generosa eloqüência, este cântico fúnebre entoado em louvor de D. Antônio de Macedo Costa, em 1891, quando o cadáver do bispo, vítima das prisões do Império, foi devolvido à terra natal num navio do governo republicano, como as honras póstumas de chefe de Estado: “Vai seguindo, caminho da Bahia, no Purus, D. Antônio de Macedo Costa. Amou na vida as tempestades, o rumor da luta, a agitação da peleja pela sua religião; é adequado a tão grande vulto o prolongamento dessa agitação e desses rumores, continuados agora pelo mar infinito, cantando exéquias em língua mais solene que o latim, no intervalo dos funerais católicos.” “D. Antônio lembra pelo caráter esses bispos guerreiros da Idade Média que tinham à cinta a cruz prolongada em lâmina de espada.” “O Estado católico encerrou numa fortaleza o padre que defendia a honra da fé comum; o Estado leigo muda uma fortaleza flutuante em capela, e faz que a força pública, que na monarquia trouxe o prelado em custódia, conduza-o, na república, em procissão!”
O escritor que assim erguia as sonoridades da sua voz para falar do cadáver de um padre, pode ser que fosse estranho ao sentimento religioso. À vista da vacilação de provas, e obedecendo ao seu conselho, permito-me duvidar, como o prudente São Tomé.
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Constâncio não chegou àquele ritmo, àquela precisão e àquela graça no dizer, por simples instinto. Ainda que a quase totalidade dos seus escritos tenha sido preparada para o “leitor de bonde”, como disse ele a propósito de Paulo Barreto, não tenhamos dúvidas sobre o trabalho do artista. A transparência e a música da sua estrutura vocabular não foi obra do atropelo, pelo menos no período disciplinar da maturação, da formação do escritor. As suas anotações a diversos livros, que tive em mãos, convencem-me de que o beneditino gostava da paciência de laboratório, sabia observar e decompor os materiais da obra dos mestres. Tratando de Castro Alves, escreveu: “Faltou-lhe repouso para as minudências da ourivesaria.” Alguns originais seus, que consultei no Arquivo da Academia, não são limpos de emendas. Conhecia, pois, o minucioso lavor da urdidura, que torna diferente a linguagem dos artistas da linguagem dos relatórios. Sabia que as palavras têm dimensões, peso, densidade, cor, melodia e cadência; que não é indiferente reuni-las em torno da mesa comum do sentido lógico ou do mistério poético; que há adjetivos de mau humor que ficam silenciosos ao lado de certos substantivos inoportunos, e há verbos que tomam a palavra, encantam os convidados, na claridade propícia dos complementos confidenciais.
O que nos priva do encontro freqüente com o artista, em Constâncio Alves, é a partitura ingrata. Seu instrumento não podia revelar todas as harmonias em folhetins a prazo fixo. A cada passo, entretanto, ele trai os requintes de precisão e de ritmo, de que era capaz, como na simples tradução destas palavras de Goethe a Byron: “Cantaremos teu destino, invejando-te: nos dias serenos e nos dias sombrios, teu estro e teu coração foram grandes e belos... Olhar profundo para contemplar o universo, simpatia para todas as angústias do coração... canto de que tu só tinhas o segredo...”
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Por isso mesmo, seus melhores trabalhos foram os que escreveu fora da imprensa e depois de entrar para a Academia, cedendo à pressão dos que o admiravam e lhe pediam largos estudos e largas conferências.
Em qualquer deles o estilo é de uma graça envolvente, a análise é penetrante, a apropriação do assunto é completa.
Tratando de Anatole France em 1924, de páginas cristãs como Le Jongleur de Notre Dame e o Cristo no Oceano, escreve: “A leitura dessas maravilhas faz pensar nalgum velho escritor monástico, ou nalgum miniaturista medieval, que, em pergaminhos tão alvos como a túnica dos anjos, fosse caligrafando pias legendas e maneando com amor santas figuras.”
Nesse mesmo ensaio deixou Constâncio outros conceitos que mostram a delicada substância do seu estilo e a atmosfera do seu pensamento: “Quando a ironia é branda e benevolente, e não ri nem do amor, nem da beleza, é virtude tão celeste como a piedade.”
Como a fascinação que exerce Anatole France é enorme no seu espírito, aprimora-se em argumentar que o mestre não foi um céptico – e a dificuldade da causa dá mais engenho ao defensor. Chega a subir de tom, a gesticular com ênfase, exclamando que o mestre “cria no espírito clássico, que é o espírito de ordem, criador da beleza perfeita. Cria no milagre do gênio grego, revelado em modelos eternos, de simplicidade inimitável. Cria na beleza, realidade radiosa, neste mundo de aparências obscuras. Cria na arte, que fixa, em ilusões amoráveis, as tristezas efêmeras da vida”. Para fortificar os artigos do seu libelo à rebours, não esquece nem mesmo o ex-libris do conselheiro predileto: “Lentement, mais toujours, l’humanité réalise le rêve des sages.”
No ardente propósito de mostrar que Anatole France “juntou fibras do coração” à sua obra não estará, involuntário, o impulso de uma defesa em causa própria?
Ele também deixou, exposta à nossa comovida admiração, uma fibra sensível, e com que pudor ela freme! Foi o seu talvez único soneto, Mater, dedicado a Jackson de Figueiredo, escrito em julho de 1922:
Eras em plena mocidade, quando
Da nossa casa, um dia, te partiste;
E eu, coitado, sem mãe, pequeno e triste,
Fiquei por esta vida caminhando.
Assim – no meu amor – teu rosto brando
Do tempo à ação maléfica resiste;
E o meu é, hoje, como nunca o viste,
Tanto o passar da idade o foi mudando.
Tão velho estou, que já me não conheces;
Nem poderias ver no que te chora
Esse a quem ensinaste tantas preces.
E tão moça ainda estás que (se memora
A saudade o teu vulto) – me apareces
Como se fosses minha filha agora.
* * *
Se foi pouca, pouquíssima a literatura de imaginação que nos legou, nem por isso deixamos de apreciar a riqueza de sua melodia interior nos estudos sobre a sensibilidade romântica, Júlio Verne, Renan, Anatole France, Gregório de Matos, Laurindo Rabelo. O artista aí está, nessas lições modelares de um letrado perfeito, que mereceria de Afrânio Peixoto este juízo elegante: “o mais letrado dos acadêmicos”. O elogio não é pequeno, sobretudo se atentarmos em que vivia, a esse tempo, aquele maravilhoso João Ribeiro, que em nosso país condensou toda a cultura humanística e literária da época, sábio do mais alto saber, irmão de Constâncio a tantos respeitos, inclusive pelo desencanto irônico e bonachão.
O estudo crítico de Constâncio Alves sobre Laurindo Rabelo, patrono da Cadeira 26, é abundante pela informação e delicioso pela forma. Destrói a falsa tradição que insistia em figurar Laurindo de violão debaixo do braço, a pedinchar jantares em troca de modinhas e recitativos. Restabelece o retrato moral do grande inquieto, autor (considera Constâncio) “da mais lancinante, a mais dramática das nossas elegias”, “A Saudade Branca”, que o desgraçado poeta escreveu à morte de sua irmã:
Que tens, mimosa saudade?
Assim branca, quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
Minha flor? Que palidez!
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Quem sabe... (Oh! meu Deus, não seja,
Não seja esta idéia vã!)
Se em ti não foi transformada
A alma de minha irmã?
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Depois, para provar que Laurindo não foi um imitador dos byronismos então em moda, asserto a que voltaria no estudo sobre “A sensibilidade romântica”, observa: “Quem lhe conhece as tristezas da vida, não lhe estranhará as tristezas dos versos.” Acompanha Laurindo em todos os lances da sua trajetória amargurada, nos lutos que sofreu o seu coração, nas injustiças e perseguições que os poderosos lhe armaram. A faculdade da ironia (a mais imperdoável) ainda aqui serviu a Constâncio para pôr em relevo a nota rara e o trecho vale como uma jóia do seu humour: “Doutor, enfim, pela Escola do Rio de Janeiro, não pôde exercer a clínica por falta de clientes. Desconfiavam que homem de tanto talento literário, tanta lógica, não poderia curar; poderia, isto sim, com sofismas sutis, convencer o doente de que ele ainda estava vivo.”
De uma curta notícia publicada no Jornal do Commercio, a 29 de setembro de 1864, informando da morte de Laurindo Rabelo, Constâncio faz o ponto de partida para a reabilitação magistral do poeta Lagartixa, identifica a sua enfermidade, acentua-lhe as linhas do caráter, mostra-lhe a honradez, a aplicação ao trabalho, os ímpetos da altivez bravia. Reduz a nada certas lendas que correram sempre sobre o boêmio lírico, transformado em tranqüilo pai de família após o casamento, e que dizia então: “Se o mar se casasse, o mar amansaria.”
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Ao traçar a “Vida dos Filósofos e dos Sofistas”, Eunápio declara, de início, que se ocupará apenas dos “trabalhos mais importantes” e não das “ações secundárias”, desdenhando assim do conselho de Xenofonte, que entendia: “... deve-se registrar até os acontecimentos miúdos na vida dos grandes homens.” O tema é caro a Constâncio. No cabide da memória de Laurindo “qualquer pessoa pendura a sua anedota”. O perigo dos “acontecimentos miúdos” está na facilidade com que são deformados. Todos os grandes homens, e até os pequenos, sofrem a colaboração gratuita dos seus contemporâneos, e dos que vêm depois. Também na conferência sobre “A sensibilidade romântica”, mostra Constâncio quanto é falsa a imagem de um Goethe olímpico, insensível aos sofrimentos alheios, de mármore (diríamos hoje: de cimento armado). E, envolvendo-se nessa querela, quase um século depois, Constâncio faz questão de depor: “A verdade está nas cartas de Joana Schopenhauer ao filho, em que aparece Goethe no seu natural, singelo e afetuoso, e com a ingenuidade de um verdadeiro poeta.”
Embora não acreditasse na glória literária, a que fugiu sempre, parece que Constâncio, de antemão, quis defender-se do século. Temia as anedotas que viessem a correr sobre o feiticeiro do Cosme Velho. Defendia o seu pudor.
O pudor desse homem discreto é o clima habitual da sua fechada existência. De raro em raro, uma frase entreabre-nos um escaninho: “Contam maravilhas dos beijos furtados; se forem como as leituras furtadas, hão de ser deliciosos.” A revelação vem no estudo sobre Júlio Verne, professor extra-numerário de imaginações adolescentes, cujos romances fantásticos enxertam muito compêndio de aula. Então – perguntamos – não sabia de beijos furtados a não ser por informações? Estamos longe das delicadas confidências do Petit Pierre sobre La Dame en Blanc e La Dame en Noir... Entretanto, nós bem sabemos – e nem todos por informação – que o ar morno da Bahia segreda aos adolescentes “uns mansos convites”. Como se teria passado essa juventude, na terra natal? Na sua memória, Constâncio rasgou a página. Ficou perdida na viagem para o Rio, em 1891. Não são essas as folhas de livro que o professor de biblioteconomia ensinará a reconstituir. Por isso, devia parecer-lhe rebarbativo o cínico de Genebra, ao anunciar enfaticamente: “Je veux montrer à mes semblables un homme dans toute la vérité de la nature, et cet homme, ce sera moi. Moi seul.”
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Esse doutor melancólico tinha nos dedos um poder demiúrgico. Tema erudito em que tocasse animava-se de uma vida estranha, trate-se de Gregório de Matos, da sensibilidade romântica ou de Júlio Verne, de uma doutrina literária, ou de uma questão biográfica. Podemos, então, representar o seu mundo interior como o velho parque da casa aparentemente morta. Quando Constâncio passeia, as estações se explicam, compreendemos a floração dos canteiros, o cair das folhas e a germinação da nova seiva. Não se pode, por exemplo, desejar uma síntese do Romantismo que seja mais lúcida do que a sua, nem da sensibilidade que esse movimento criou ao nascer na Inglaterra, ao passar para a Alemanha e ao invadir as fronteiras de França, produzindo, aí, ação e poesia, Napoleão e Musset. É todo panorama do mal du siècle.
Também ninguém estudou, como ele, em nossa literatura, o drama agressivo do Boca do Inferno. Na conferência sobre Gregório de Matos, a crítica de Constâncio atinge o máximo de finura sagaz e de força dialética. Antes de mostrar o alvoroço com que se anuncia, em Gregório, o sentido político e construtivo da sátira nacional, põe em relevo o contraste biográfico: o Boca do Inferno a viver, metade da existência, em Portugal, afagado e admirado, e a desembarcar aqui, maduro em anos e em espírito, “com aborrecimento de emigrante, amargor de degredado, desdém de reinol”. O quadro, depois, ressalta mais expressivo: o sentimento nativista a crescer com as sombras do crepúsculo.
Se recorda os seus desregramentos, é para salientar no fim que o “grande pecador de sempre não foi cristão da hora da morte”: foi também poeta católico de profunda sinceridade. Com especial enternecimento cita os versos de Gregório moribundo:
Mui grande é o vosso amor e o meu delito,
Porém pode ter fim todo o pecar,
Mas não o vosso amor que é infinito.
Essa razão me obriga a confiar
Que por mais que pequei, neste conflito,
Espero em vosso amor de me salvar.
Acentua Constâncio a meiguice brasileira que há nos versos amorosos de Gregório de Matos, depois da sua integração no solo pátrio. Era agora meiguice ao jeito da nossa terra:
Já vos ides? Ai, meu bem,
Já de mim vos ausentais?
Morrerei de saudades
Se partis e me deixais.
É forçoso este argumento,
Tem conclusão infalível:
Irdes vós, e ficar eu,
Meu amor, como é possível?
As derradeiras linhas do estudo magistral, em que demonstra todos os pontos da tese com a precisa elegância de um silogismo, desperta-lhe a veia da eloqüência, da eloqüência que nele dormia, sob a forçosa discrição tartamuda. É uma das suas melhores páginas, pela nitidez do traço, pela intensidade do movimento e pela saborosa seiva que empola cada folha desse ramo de louro: “Glorifiquemos, no mais antigo dos nossos patronos, o primeiro dos nossos clássicos, o cronista da sua época, o caricaturista impiedoso da sua gente, o poeta sacro e o poeta lírico que tirou sons harmoniosos da harpa de David e da viola do trovista; o que assinala com a sua figura longínqua, ainda grande à distância, o ponto inicial da nossa literatura; espírito descomunal, proceloso e rebelde que desabou sobre a Bahia, varrendo ruas e praças, invadindo casas, obrigando a um fecha-fecha de consciências assustadas, destelhando vidas e quebrando telhados de vidro, desembuçando crimes, flagelando ridículos e injustiças, arrancando à hipocrisia a cabeleira postiça, levantando poeira de escândalos, derrubando casebres de reputação mal escoradas, esbofeteando insolências, entrando em assovios por conventos e palácios, desencadeando-se num tumulto de silvos, uivos, berros e estrondos – e esmorecendo em brandos sussurros de reza – e expirando na suavidade de suspiros de amor.”
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Há uma velha gravura que representa um canto de biblioteca medieval. Ao fundo, uma janela com varões de ferro. Na estante de leitura, repousa um grosso livro de capa de couro. Outros, com o mesmo severo aspecto, se enfileiram num armário. Um frade, junto à mesa, depois de fechado o livro, medita. Que lhe terá contado naquele dia o companheiro silencioso? Abriu-lhe, quem sabe, caminhos cheios de sol, num país remoto, onde todas as árvores são encantadas, e em que descem das nuvens anjos surpresos, a ouvir o hino também celestial dos pássaros. Ou, quem sabe, revelou-lhe o poder de certas ervas que os bruxos aconselham pisar, nos almofarizes, de mistura com o coração em cinzas de repugnantes animais, para que da ambiciosa alquimia surja o elixir da beatitude. Ou, quem sabe ainda, recordou-lhe, entre iluminuras gentis, os versículos da sabedoria: “Mais vale uma só mão cheia de calma felicidade, do que as duas mãos cheias de trabalhos e de vãos cuidados.” Na tarde que cai lá fora, a sombra parece insinuar também: “Uma geração desaparece; outra lhe sucede; a terra, entretanto, fica no mesmo lugar.”
Imagino Constâncio Alves assim, na solidão estudiosa. O único tédio que não lhe ensinou a ciência foi o tédio dos livros. Tudo pode ser “vaidade das vaidades”, menos o lindo mundo irreal, que possui para si só, e do qual muito a custo o veremos sair. Vaidade seria ceder aos impulsos da arte. Vaidade seria multiplicar em muitas obras a experiência do seu pensamento. Basta-lhe ser, para os “happy few”, o humanista que se mascarou em comentador mordaz de folhetins hebdomadários. Poderia ter deixado uma obra sistemática, obediente a um plano orgânico, sem esse tom de acasos dispersivos, de encontro fortuito com os assuntos. Não quis... Tudo é vaidade das vaidades.
A atitude moral de Constâncio é um enigma de linhas esquivas. Não sabemos até que ponto influiu no seu espírito o conselho da filosofia schopenhauriana, que é libertação pela consciência, com a dominação da vontade, e contemplação indiferente da vida que passa. Em Constâncio, a lição agnóstica de Schopenhauer dir-se-ia muito vizinha da resignação cristã. Nessa existência de asceta livresco, de uma conformação voluntária e tranqüila, parece que falta pouco para a humildade franciscana. Talvez uma prece apenas. Talvez apenas um gesto: as mãos postas, em adoração.
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Ninguém foi mais o oposto de Constâncio Alves do que Paulo Barreto.
O que num era renúncia, mansidão e indiferença, encerramento na vida imaginária, noutro era avidez de sensações, apetite espetacular de viver. Este sim, alimentava-se de nourritures terrestres: “Chacune de mes faims attend sa récompense.” “Satisfactions! Je vous cherche. Vous êtes belles comme les aurores d’été!”
Ao suceder-lhe nesta Cadeira, Constâncio pronunciou o elogio de Paulo Barreto. Crítica de muita finura, tocando nos pontos mais visíveis da obra, notando aqui o caráter de vertigem, ali a ambição de acompanhar os mestres, além a impaciência de escrever “para um leitor que não espera”, o leitor de jornal.
O trabalho de Constâncio é cheio de argúcia, a começar na comparação entre Guimarães Passos e João do Rio, o primeiro despreocupado de hoje e de amanhã, o segundo “amando as letras sem descurar dos negócios”. A cada período, Constâncio acrescenta um traço de Paulo Barreto, indica um relevo, revela um contorno. Mostra como o rapazinho pobre se fez repórter, invadiu a vida com estrépito, criou uma situação e construiu uma obra, a largos passos, com pressa, ávido de saber e de ensinar, de ver e de contar, e morre, estouraaos nossos olhos, ainda jovem. “Foi o trabalho que o matou”, diz comovidamente Constâncio.
Há, todavia, nesse estudo, qualquer coisa que me deixa no ar, com desejo de pedir mais, de suplicar a Constâncio que continue, que certamente há galerias subterrâneas por baixo do palco sonoro.
Direi, a meu turno, o que ele escreveu de João do Rio e Guimarães Passos: não eram feitos para se entenderem. Também João do Rio e Constâncio Alves, “quando se encontravam na rua, embora fossem pelo mesmo caminho, e juntos, levavam intenções opostas”.
A ironia, em Constâncio, era “branda e benevolente”, disfarce de uma filosofia pessimista, inimiga dos contactos da multidão. No outro, assumia um caráter de atividade pública, de combate campal. Não era vestimenta sutil, eu ia dizer clâmide grega: era o cravo verde de Oscar Wilde e era, também, cocar de plumagens tupis, num escandaloso amor à vida popular brasileira. O letrado de gabinete não podia sentir o artista cúmplice das ruas e da noite, insolente, sentimental e humano.
Entre os dois, um ponto de contacto: a banca de redação. Mas, que distância entre o rodapé de Constâncio e a coluna de João do Rio!
Constâncio dá a impressão de escrever para o jornal em pequenos desabafos meditados e discretos, em visitas de cerimônia, que o fatigavam um pouco. As permanências no plano terrestre não o prendem muito: volta logo para casa, encerra-se entre os livros inefáveis. Aí, integrado no irreal e no ilusório, retoma posse da sua força. Para esse Anteu, o solo era o imaginário.
João do Rio, na atmosfera do jornal é que vai multiplicar-se em energias criadoras, aprofundar o apetite da cultura e da experiência. Saiu de casa a correr, passou pelas ruas com delícia, subiu, as escadas da redação assobiando, mal teve tempo de pensar, de sentir, já está escrevendo: é uma novela, é uma reportagem, é uma conferência, é uma crônica mundana, é um artigo de patriotismo. “Adiante!” O alimento nervoso está por toda parte, nas ruas que percorreu, na esquina em que encontrou um amigo, na praça onde havia um comício político (ridículo ou comovente, conforme), na sala do secretário onde apareceu um cavalheiro a pedir para ser entrevistado, ou a mulher do derradeiro assassino, com os filhos, chorando. Daí a pouco será uma Comissão das Classes Conservadoras, com um memorial sobre a Reforma das Tarifas. Depois, a diretoria do Bloco das Mimosas Cravinas à procura do cronista carnavalesco, Lord Pixinguinha. “Estão prontos os originais do incêndio da Praça da Bandeira?” O jornal é o tumulto, é a vida. A ele vêm bater, incessantes, todas as ondas do mar social.
Para João do Rio, o jornal foi um enriquecimento: de idéias e de revelações. Era o meio natural da sua inteligência: banhava-se nas águas revoltas, imergia, voltava à tona, como um tritão extasiado. Foi aí, sentindo a força das correntes e a fecunda elaboração das profundidades, que bebeu a energia que se desprende de toda a sua obra, o conselho tônico, a lição de atividade e de otimismo.
Não é o cronista mundano, nem o repórter das religiões, nem o fazedor de paradoxos que importa fixar. Conhecemos as suas viagens ao Cairo, as suas amizades em Istambul, o seu spleen no Orient Express. Sabemos com que justo fastio fumava um cigarro à porta da Gazeta de Notícias ou do País, e esse cigarro, forçosamente, era um cigarro turco. Tudo isso interessa pouco.
Sua personalidade espiritual era muita mais vasta. No fundo de tantas complexidades fascinantes, triunfava a ternura e o entusiasmo, o sentido construtivo da solidariedade humana. Era então o crítico do Ramo de Loiro (elogio de poetas e de artista), era o professor de sentimento nacional nas conferências do Sêsamo e do Adiante!, era o novelista doloroso do Dentro da Noite, d’A Mulher e os Espelhos e do Rosário da Ilusão. Quem poderá esquecer o seu Bebé de Tarlatana Rosa, tapando com a máscara o monstruoso buraco do rosto, e procurando matar a fome de amor na confusão favorável de um carnaval? Ou a D. Joaquina, velha, vencida, como um trapo, entre chufas de operários encervejados, a caçar moedas altas horas da noite, pelas ruas escuras, para sustentar os filhos madraços?
Quase toda a obra novelesca de Paulo Barreto é assim, como um jardim pela madrugada, povoado de sombras que se arrastam, que segredam, não se sabe se pedem esmola ou a satisfação de um vício. Sua humanidade é equívoca, brochada na treva da noite. Quando nos mostra, numa sala mundana, a conversa elegante da gente de escol, é para logo meter uma história triste, que por um instante espalha frêmitos, evocando a miséria que anda lá por fora, no lusco-fusco dos lampiões, e se esconde por pudor. Entre esses dois extremos, a aristocracia dos salões e a plebe anônima das ruas, sua sensibilidade criou um tecido de compreensões cúmplices, estabeleceu uma comunicação invisível, como o ensinar que por toda parte, no alto e embaixo, é o mesmo ansioso bater do coração humano, e a mesma insofrida agitação dos corpos que pedem carícia e consolo.
Entretanto, como simpatizar logo com este senhor blasé, eloqüente nos paradoxos e nos galicismos, que à porta de um jornal, de casaca, vindo de uma festa diplomática, está prestes a ir escrever um artigo, e uma hora depois, precisamente uma hora depois, deambulará pelas praças desertas, escutando no mistério da noite a imensa queixa dos infelizes?
Esse senhor é quase desagradável. Confunde, engana, deixa atrás de si olhos perplexos e inteligências desconfiadas. “Temperamento lírico-irônico. A ironia é o lirismo da desilusão.” Vai-se ver, por baixo da máscara de impertinência, Godofredo de Alencar está com uma lágrima ao canto do olho: acaba de atirar a carteira à D. Joaquina, por piedade gratuita.
Dele me informava um amigo, que dizia conhecê-lo bem:
– O Paulo tem horror à natureza. Não pode passar dois dias num hotel da Tijuca.
Entretanto, fez aquela sinfonia em azul, o seu embriagado canto a Belo Horizonte, o Miradouro dos Céus.
Não sei a propósito de quem, escreveu ele que precisamos procurar os homens nas suas obras e não na sua vida. A verdade humana de Paulo Barreto está nos seus livros. Assim mesmo, que fonte de equívocos para os desprevenidos! A toda hora parece cair em contradições. Entre essas contradições, por exemplo, estava o ímpeto de partir, a debater-se na sedução de ficar. “Partir é o verbo realmente delicioso de todos os dicionários. Partir é o único e real gozo inebriante, o gozo de deixar com dor ou com alívio, pensando no que pode vir a acontecer no futuro misterioso. Partir é o verbo que pauta a vida e a desagregação que ela explica. Partir é o supremo bem, é a ilusão de avançar, de libertar-se, de ir além.” No entanto, comentando a “moléstia de mudar de casa”, registra noutra página esta doce coisa, que se diria sair dos lábios de um repousado patriarca: “Amar a casa é estimar a fixidez, é compreender as secretas raízes que nos ligam ao solo.”
Toda a sua obra está cheia dessas raízes, que se incham de seiva, descendo voluptuosas no seio da terra brasileira. Poucos homens podem gabar-se, neste país, de haver escrito palavras tão claras e tão altas sobre o amor da pátria, o dever de servi-la, o saboroso imperativo da aceitação e do entusiasmo. Faltava-lhe o senso tradicional da língua? Não importa, sua lição de escritor vale pela nervosidade, pela procura de um ritmo novo, pela angústia de adaptar a expressão à sensibilidade moderna. A tradição, soube amá-la no passado da raça, como prova essa insistente meiguice pela terra portuguesa, que seus inimigos também não pouparam, insinuando que havia negócio onde cantava apenas o lirismo.
Uma noite, na redação da Pátria, contou-me o plano de um livro que pretendia escrever sobre Lisboa – desde a Lisboa das conquistas até a Lisboa de agora, fazendo desfilar através das idades as diferentes fisionomias citadinas:
– Vai chamar-se: A sonata de Lisboa ao luar.
Esse interesse pelo espírito português não o impedia de, sendo bem da nossa gente, senti-la como o mais belicoso dos nativistas. Pelo contrário, era o carinho pela terra das nossas origens ocidentais que o fazia compreender melhor, e agudamente, a poesia do fenômeno brasileiro, na natureza e no povo.
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Em 1902, em Petrópolis, numa nevoenta manhã. Domício da Gama introduziu na sala de trabalho do Barão do Rio Branco um rapaz de vinte anos, que tremia. Pedia um emprego de secretário de legação. A missão Enéas Martins ia partir, a ocasião era boa. O rapaz não tinha nome, tinha apenas uma grande vontade de trabalhar. Era repórter.
O Barão foi amável e lamentou: as nomeações? ah! sim! uma pena, já estavam feitas, pelo próprio Dr. Enéas Martins.
O rapazinho despediu-se tartamudeando a sua confusão, atravessou a sala, apertou a mão ao cândido Domício da Gama, desceu à rua, andou desesperado pelas alamedas de hortênsias, tomou o trem. Maravilha da natureza serrana, quando se traz na alma “o lirismo da desilusão!” De todos os matos, ao longo da serra, parece que a folhagem acena conselhos: lá embaixo está o mar, e a cidade imensa que se estende. Há, porém, nos pantanais da baixada, na raiz da montanha, campos de lírios que cheiram forte, que animam, que dão esperança, que insinuam os maravilhosos bens que há na vida, além de um emprego que se perdeu...
Paulo Barreto voltou para a redação do seu jornal. À porta, encontrou um amigo a quem contou a tentativa caipora. O amigo riu-se, sacudiu-o: por que fora ingênuo? Essas coisas dependem de empenhos. Como ousara aparecer só, exprimir com simplicidade uma ambição de adolescente? “Então, escreve Paulo Barreto, eu que vira o mundo se abrir tão claramente, resolvi não pedir. Era continuar no caminho para onde os deuses me tinham conduzido, e trabalhar, trabalhar, trabalhar.”
Não traiu os seus deuses. A soma de trabalho desse escritor que morreu apenas aos quarenta anos, é enorme. E desse trabalho ficam milhares de páginas feitas a correr, páginas em que há duradouras lições de entusiasmo, elogios à beleza, à inteligência e ao esforço, conselhos de fé, exortações à piedade, ternura pela sua terra e pelas terras alheias, histórias de gente que sofre e êxtases da mais pura poesia.
O displicente das atitudes agressivas também se abria em doçura e sabia, então, murmurar certas baladas, como a daquele grilo que canta na noite: “Que estás a ouvir? Silêncio. É um grilo. Apaga a luz. Não aborreças o pobrezinho. Eu gosto dos grilos. O grilo é o único ser que nas cidades relembra a paz dos campos. É como uma folha verde da mata, aljofrada de sereno e de inocência, que soa a longa hora intérmina dos abandonos da terra. Deitemo-nos. Como estás cansada... Na rua passam automóveis a roncar, a buzinar. Os automóveis, alta hora da noite, conduzem a desilusão do vício. E vêm da rua, com o seu rumor, vozes que contam interesses, paixões, desequilíbrios. Espera, deita-te. Ouves? É o grilo. Recomeçou o seu grilar. Insistente, insiste, insistente. Fala baixo. Não o assustes. Fecha os olhos. Ao ouvir o grilo de olhos fechados, a gente lembra os campos sob o luar, as moitas molhadas de gozo da noite, a curva das estradas desertas. E até sente o cheiro da erva sã, aquele penetrante ar perfumado, que é a alma sutil do verde da terra, tão vário e tão igual – verde secular das árvores frondosas, verde quente dos matagais floridos, verde pálido das pradarias que ondulam... O grilo insiste, insistente, insiste. Como é bom repousar num quarto simples, ouvindo o grilo. Faz tão bem...”
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Para sentir a riqueza complexa desse homem instável, romântico, prático, mordaz, piedoso, ingênuo, exasperado, triste ou exuberante, variando de atitude a cada hora do dia ou da noite, a cada mudança do tempo ou da luz, é preciso ir ao fundo da sua sensibilidade, surpreender os mil reflexos da vida no espelho misterioso.
Na sua obra vive o Rio de Janeiro dos últimos trinta anos, a alma vária e voluptuosa da terra carioca. Ele conhecia o povo, todo o povo, desde os salões até os mafuás, do palácio à beira-mar aos casebres do último arrabalde. Não foi espectador da multidão: viveu com ela, andou com ela, sentiu o seu drama e a sua poesia perdulária. Viveu na rua carioca e morreu na rua carioca.
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Senhores Acadêmicos:
Ao tomar posse desta Cadeira, quero unir num mesmo elogio os nomes dos meus imediatos antecessores: Constâncio Alves e Paulo Barreto. Eram diferentes, até mesmo opostos, no temperamento, na concepção da arte, da moral, da vida.
Ambos, entretanto, foram portadores de uma lição de grandeza humana.
Num, encontramos a meditação desinteressada, o enlevo gratuito da cultura no plano abstrato; noutro, a ação, a paixão de todas as formas sensoriais da vida quotidiana. Se quiséssemos reduzir essas duas personalidades a um esquema de sentido musical, poderiamos dizer talvez: Constâncio Alves ou a melodia interior; Paulo Barreto ou a sinfonia ambiente.
Ao entrar em vossa Casa, agradeço ao destino a oportunidade, que me deu, de falar com espontâneo amor de dois espíritos admiráveis, que honraram esta Academia e honraram a profissão de escrever no Brasil.