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Godard: o que Resnais pensa de mim?

 

Se todos fizessem o mesmo cinema de Tati, eu não precisaria fazer certos filmes, diz Godard


HAVANA, JANEIRO de 1968 -Quase meio-dia, a piscina está vazia de gente. Surge um homem, magro, de tanga, dá um mergulho e fica exibindo braçadas curtas e cansadas.


Logo depois, a mulher alta, tão magra como o homem, num biquíni sumário, deita-se na beirada e fica olhando o sol de Havana.


Tenho vontade de perguntar ao homem se a água está fria, mas ele pode me responder em russo ou em servo-croata, o melhor é ficar calado, num país socialista a prudência aconselha o racionamento de gêneros de primeira necessidade e de perguntas sem necessidade.


Resolvo testar eu próprio a água e mergulho, sem muito brilho, mas com a suficiente habilidade para não esbarrar no solitário nadador que continua com suas braçadas curtas e cansadas. Mesmo assim, há a colisão, sem mortos nem feridos.


O homem murmura um "Pardon" gorgulhante -e bebe um pouco de água por causa da gentileza. Desculpo em silêncio, com um gesto da cabeça -a piscina tem um gosto de cloro e de palmeiras.


O incidente perturba a paz do cidadão. Retira-se cabisbaixo, o corpo pingando, enxuga a cara na toalha e coloca uns óculos defumados. O rosto me parece conhecido. Retiro-me também e fico observando o casal: a mulher é mesmo muito magra para o meu gosto e -segundo parece- para o gosto do próprio companheiro, que passa por ela como se fosse um estranho.


Encaro o homem: um rosto de menino malcriado, desses que ficam sempre de castigo. O sol do Caribe havia avermelhado um início de calva, mas assim mesmo reconheço o camarada. É Jean-Luc Godard.


Sabia que ele estava hospedado no mesmo Habana Libre, sucessor socialista do capitalista Havana Hilton. E lá ficamos ao sol, lado a lado, num silêncio conveniente a duas pessoas de poucas palavras.


Até que surge o indefectível conhecido comum que faz as apresentações. O romancista Jorge Semprun, meu colega no júri do Prêmio Casa de las Américas, marca um jantar com Godard para a mesma noite.


Sou apresentado como brasileiro -e Godard olha para mim como se eu fosse um marciano. Mais tarde, pouco falaríamos do Brasil, mas muito de Godard. Pergunta-me se conhecia o seu último filme, "Week-End". Respondo que sim.


- Viu no Brasil?

- Não, em Paris, antes de vir para Havana. O cinema tinha umas 28 pessoas na platéia.


Parece não se incomodar nem com a informação nem com a indelicadeza. Jorge Semprun, amigo e roteirista de Alain Resnais, sofre dele pesado interrogatório: Resnais gosta dos meus filmes? Ele acha que sou um idiota? Ele vai continuar a fazer os mesmos filmes?


Semprun responde o que pode. Resnais via "com muita admiração a estranha e fascinante aventura de Godard no cinema".


A resposta parece que agradou ao cineasta. Há um silêncio mais ou menos longo e, imprevistamente, ele pergunta se eu tinha visto "Playtime", de Jacques Tati, que havia estreado em Paris, quase ao mesmo tempo que "Week-End", do próprio Godard.


- Vi. Achei, inclusive, que algumas coisas de Tati estão no seu novo filme. A extensa fileira de carros amassados, os cadáveres ensangüentados, aquele trator que esbarra num piano de cauda...


Godard pensa um pouco e admite:


- Se todos fizessem o mesmo cinema de Tati, eu não precisaria fazer certos filmes.


Acho a resposta inteligente e concordo com ela. Mas logo alguns rapazes chegam para apanhar Godard. Vão exibir "Acossado", e o autor faria a apresentação do filme. Ele pergunta se não queremos ir.


A conferência é fria - e a exibição do filme mais fria ainda. Os cubanos não gostaram de certas posições do cineasta, principalmente não gostaram de "Pierrot Le Fou", que chegou a ser interditado pela censura de Fidel Castro.


Por conta daquele filme, aplaudo-o de pé, e Semprun me acompanha na modesta ovação. Godard agradece e nos empurra para fora da sala, de volta ao hotel.


Dias depois, a despedida final. Ao contrário de Semprun, que abraça a gente e diz com forte sotaque espanhol um cálido "buena suerte", Godard acena para nós, num gesto ambíguo que tanto pode ser um "Au revoir", um "A bientôt", um "Vá para o diabo que o carregue". Respondo com o mesmo gesto, dando ênfase ao último significado.


Folha de S. Paulo (SP) 29/6/2007