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O legado da nossa miséria

 

É comum estabelecermos que o Bem está num lado e o Mal no outro


UMA DAS desgraças da humanidade é problemática, para não dizer insolúvel: milhares de leis, regulamentos, conceitos e preconceitos se atolam na dificuldade de definir o que seja uma e outra coisa, sobretudo no campo da moral e da filosofia.


Daí resultando que, com raras exceções, o Bem e o Mal se misturam e de tal forma se entrelaçam e confundem que tanto um como outro valor ficam dependendo de um ponto de vista não apenas subjetivo mas ocasional, ou seja, temporário.


Um tal de Maniqueu criou a sua doutrina, separando rigidamente o Bem e o Mal, como se separa, na cozinha, um ovo de um tomate. Ambos têm características próprias, definidas, objetivas. Pode-se até misturar ovo e tomate numa salada, mas todo mundo saberá dizer, vendo um ovo ou um tomate: Eis um ovo! Eis um tomate!


Já com os conceitos do Bem e do Mal, o furo é mais em cima. Genericamente, eles se arrastam através dos povos e dos séculos, misturados, alternados, escassamente delineados em situações críticas.


Na última Guerra Mundial, por exemplo, ocorreu um desses raros momentos em que uma consciência razoavelmente sadia tinha elementos concretos para definir o que era o Bem e o Mal, dadas as circunstâncias do próprio conflito.


Na Guerra Mundial anterior, esta definição não foi tão nítida, havia diversas e contraditórias causas em jogo, a decisão de escolher o Bem e o Mal ficou reduzida ao campo estritamente patriótico, nacionalista.


A bandeira de cada país funcionava como divisor supremo das batalhas, tanto nas trincheiras como nas retaguardas.


Bem, esse comprido preâmbulo é para me perguntar se nas crises políticas e sociais que costumeiramente atravessamos, é comum estabelecermos que o Bem está claramente num lado e o Mal no outro, sem margem para qualquer dúvida ou torcida pessoal.


A julgar pela mídia, em geral, a hipótese é afirmativa: o Mal está plenamente configurado num dos lados, seja na oposição ou na situação.


Os formadores e informadores de opinião decretam diariamente que é necessário separar o joio do trigo -tarefa que nem sempre é fácil, há que primeiro definir o que é o joio e o trigo.


Um dos maiores escritores norte-americanos, que por sinal acumulava as funções de jornalista dos mais populares, dizia que a imprensa procura sempre separar o joio do trigo para poder tranqüilamente publicar o joio.


Evidente que a opção pelo joio facilita as coisas. No caso que atualmente empolga a opinião pública nacional (o assassinato de uma menina de seis anos), o Bem está representado no pessoal que enche as ruas e promove manifestações contra os possíveis assassinos, escrevendo comoventes cartas às Redações.


A turma que fez vigília cívica e ruidosa diante da casa do pai e da madrasta da menina funcionou como um escalão avançado do Bem. Por sua vez, o pai e a madrasta são os agentes do Mal. Simples -ou elementar, como diria Sherlock Holmes para o dr. Watson.


Já comentei, em crônica na página 2 ("Pavana para a menina morta"), que este crime hediondo no seio da classe média não pode ser inserido na onda de violência generalizada que a sociedade como um todo atravessa, bandidos contra mocinhos.


É um caso isolado daquilo que Machado de Assis, na última frase de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", chamou de "legado da nossa miséria".


O Mal não é a ausência do Bem. É uma entidade própria, acoplada à condição do homem, nem sempre anulada ou disciplinada pela camada de civilização e moral imposta pela sociedade ou pela religião.


A metáfora bíblica colocou o problema logo no início da existência humana, na forma de uma árvore com os frutos do bem e do mal. Não foi a atividade sexual, como genericamente se acredita, a causa da perdição do homem.


O poeta Ovídio foi talvez aquele que melhor teve consciência dessa distinção do joio e do trigo: "Video meliora proboque, deteriora sequor". Vejo o Bem e o aprovo, mas faço o Mal.


Folha de S. Paulo (SP) 25/4/2008