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Os sacrifícios do poder

 

Estarrecido, contemplo a foto de duas autoridades de Brasília. Severamente trajados, como autoridades que se prezam, a cara severa de quem cumpre um dever sagrado, eles estão concentrados na função de beber um copo d'água.

Aparentemente, seria um evento banal. Autoridade ou não, todos nós bebemos copos d'água. Mas a foto merece que seja contemplada de joelhos por todos nós, cidadãos, principalmente pelos cidadãos que moram e bebem água em Brasília. Deu nos jornais: análise feita num copo d'água que o presidente bebia revelou milhares de coliformes vamos admitir, é dose! Se o presidente da República passa por tão terrível transe, imagine o resto do povo.

Bem, existem autoridades justamente para isso, ou seja, tomar providências. E providências foram tomadas em ritmo de Felipão, como dona Dilma anunciou recentemente. Um aviso para que possamos louvar os nossos homens públicos com aquela eficiência que todos admiramos em nossas autoridades.

O problema já é antigo. Em tempos idos, ao receber os resultados da análise, o governador local não considerou satisfatórias as explicações recebidas do departamento responsável e aceitou a demissão coletiva de todos os seus diretores. O Brasil como disse Jorge Ben Jor é um país abençoado por Deus: bastou a demissão de quatro ou cinco engenheiros que cuidavam do problema --e 24 horas depois, miraculosamente, a água estava em condições de ser aquilo que o Antonio Houaiss um dia xingou de "Ninfa potável".

E a foto que estou contemplando publicada numa revista daquela época, é justamente essa: o governador e seu secretário de Obras estão bebendo água diante das câmeras da TV e da imprensa. Sérios, compenetrados como quem cumpre um dever arriscado, eles ingerem a ninfa potável aos pequenos goles, dando exemplo a todos os cidadãos do Distrito Federal.

Se eles bebem é porque a água não mais apresenta 250 mil coliformes fecais. A mágica foi meio besta, pois 250 mil coliformes por milímetro é coliforme suficiente para tornar suspeito qualquer tipo de água. Pensei num truque: a foto é verdadeira, mas a água que as autoridades estão bebendo é uma saudável Caxambu, ou quem sabe, uma Perrier importada, uma Evian, uma Vitel de boa procedência.

Afasto a hipótese como injuriosa às autoridades. E lembro outro exemplo. O rio Paraíba, em Campos, foi dado como altamente poluído, pasto de graves hepatites. O governador de então, Chagas Freitas, durante a campanha eleitoral, prometera um mutirão de obras para saneamento do rio que, na verdade, é talvez a ligação mais natural entre as duas cidades, Rio e São Paulo, desprezando-se a via Dutra e a Ponte Aérea. Para provar que o rio já estava despoluído, tirou o paletó, os óculos e mergulhou de cabeça, tronco e membros nas recuperadas águas do rio Paraíba.

Fez peixinho, nadou de cachorrinho, bateu os pés, enfim, demonstrou a inexistência de qualquer perigo. Bem verdade que não chegou a pegar hepatite. Pegou uma baita pneumonia que parecia simples mas revelou-se dupla. Amarrou-se no leito por duas semanas, chegaram a pensar que ele renunciaria ao cargo. O vice-governador estava em Monte Carlo, foi convocado às pressas. A tanto a função pública obriga.

Por essa e outras, sempre que me acenam com a possibilidade de um cargo qualquer, penso nesses nobres exemplos. Por nada no mundo cairia num rio com água abaixo de 10 graus. Nem por todo dinheiro do mundo beberia conscientemente um copo d'água sabendo que ele contém 250 mil coliformes fecais. Não há poder ou glória que paguem tais e tantos sacrifícios.

Bem verdade que, inadvertidamente, já devo ter ingerido meus sapos e demais batráquios por aí, mas sem querer, sem consciência e sem direito a foto e a glória. Daí que minha ficha médica, complexa e extensa, até agora não registrou nenhum caso de hepatite ou pneumonia, nem a simples nem a dupla.

Folha de S. Paulo, 12/7/2013