Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Outros tempos

Outros tempos

 

RIO DE JANEIRO - "Não resta a menor dúvida de que o Brasil..." -as primeiras palavras saíram fáceis, mas o texto embatucou. Dono do jornal e principal editorialista, arrancou a lauda da máquina de escrever, amassou-a e jogou-a na cesta. Suspirou, botou nova folha na velha Remington que herdara do pai junto com o jornal, a rotativa e um sítio em Campo Grande onde criava galinhas.


"Indubitavelmente, a fase que o Brasil atravessa..." -pensou que desta ia, mas não foi. Estancou novamente. Pensou, pensou, acendeu um cigarro, olhou em volta, a redação vazia, somente o rapaz da oficina que esperava o editorial para fechar a página dedicada à opinião. Arrancou a lauda, não a rasgou, apenas a amassou e a jogou na cesta.


"Se havia qualquer dúvida na capacidade de o Brasil..." -achou bom o início, encontrara o estilo famoso que demolira ministros, denunciara escândalos e cobiças do capital internacional em nossas reservas de minério de ferro.


Foi ao bebedouro junto aos banheiros, bebeu dois goles e um terceiro para garantir que não teria sede nos próximos 30 minutos, tempo que julgava adequado para terminar o editorial. Voltou à Remington, caprichou no alinhamento da nova lauda e de um jato obteve a frase inicial do texto definitivo:


"As dúvidas finalmente acabaram, substituídas pelas certezas de que o Brasil pode..." -aparentemente parou não por falta de inspiração, mas para quebrar a cinza do cigarro no cinzeiro que ganhara de um agência de publicidade.


Leu o que escrevera e não aprovou. Arrancou a lauda com certa raiva, não de si mesmo, mas do rapaz da oficina que esperava o artigo para fechar a página. Ordenou:


- Mande botar no lugar aquele anúncio do homem carregando um peixe nas costas... o óleo de fígado de bacalhau...


Folha de S. Paulo (SP) 4/7/2007