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O livro dos livros

 

Embora contra a vontade, respondo a um amigo que me pede uma relação de livros que eu gostaria de reler, caso dispusesse de tempo. Em minha resposta, incluiria alguns livros que realmente gostaria de reler — não por serem bons ou necessários, mas apenas por fidelidade pessoal.

 

Estanharam que eu incluísse Michel Zevaco e Alexandre Dumas, deixando de relacionar Shakespeare, Homero ou Dante. Ora, senhores, livros há que necessariamente obrigam a que se arranje tempo e vontade para a releitura. No caso de Shakespeare, por exemplo, qualquer folga na minha rotina e eu pego o "Otelo".

 

Por modéstia, não vou dizer aqui os livros que obrigatoriamente leio todos os anos. Posso adiantar alguns, como "Tartarin de Tarascon", "Asia", "Memórias de um Sargento de Milícias", a Constituição do Brasil e o Código Nacional de Trânsito. São leituras pias e úteis, a que me obrigo por dever e gosto, tentativas frustradas de me tomar um bom cidadão. Stendhal lia todas as semanas o Código Civil em busca de um estilo seco, despojado, perfeito.


Mas livros há que gostaria de reler e — infelizmente — já não há tempo nem modo para este tipo de prazer, substituído por outros razoavelmente inconfessáveis. Lembro a emoção com que penetrei no tumultuado mundo de Zevaco, seus Pardaillan, suas Faustas vencidas, o senhor de Buridan, a ponte dos suspiros. Só um imbecil não gostaria de recriar a emoção de ver o Frei Corigan (Coriganus frater) na fogueira. Com Alexandre Dumas a mesma coisa, embora, hierarquicamente. Dumas já pertença a outros quinhentos reais.

 


Vibrei com os grossos volumes das "Memórias de um Médico". O que sei de Revolução Francesa está mais no Dumas do que nos amargos livros de história com que me aborreceram a adolescência.


Evidente, tais leituras em nada influíram na minha formação e muito menos em minha discutível ambição literária. Li, gostei, esqueci muita coisa —o que foi pena— e de todos esses livros guardo com carinho os bons momentos e os espantos e, sobretudo o gostoso escorrer das horas solitárias e vazias que formaram, em um sentido geral, a minha juventude.


Se alguém me perguntasse pelos livros prediletos, a resposta, como é óbvio, seria outra. Incluiria, como mandam os figurinos literários, os ensaios fecundos, os grandes romances formais, o Gibbons em não sei mais quantos volumes, o Molière, o Racine, o Dante, Montaigne, Flaubert, enfim, os autores sempre citados por todos.

 

Mas incluiria também o Arquibaldo Botelho Cabral Benjamim Xavier, autor de um alentado opus intitulado "As Asas de ícaro dos Impostos". Apesar do título, o livro traz o diploma da primeira comunhão do autor e uma foto do batizado de um de seus netos. São 650 páginas e um anexo contendo a relação dos demais livros do Arquibaldo, ao todo, 33 obras sobre direito, religião, geografia, arqueologia, homeopatia, positivismo e xadrez.


 

Há que reconhecer na vida de cada um de nós um determinado livro que marca o nosso antes e depois. O livro dos livros. Para muitos, a Bíblia, a "Imitação de Cristo", "O Príncipe", "O Contrato Social", sei lá, há livro para tudo. Nesse sentido, há um livro que realmente marcou nossa experiência —ou aventura— através dos anos e dos erros.


Não se trata do famoso livro de cabeceira. Na cabeceira dos grandes homens não há livro algum —e isso não significa que eu seja um grande homem. Donde se conclui que não há livro na cabeceira dos homens pequenos. Na minha, além de um abajur, há um desentupidor nasal para aliviar a rinite crônica que me acompanha desde a minha infância.

 

Esse livro dos livros —cuja sombra projeta em minha estrada uma curva inesperada e cruel— talvez nem seja livro. É antes um apanhado de histórias que fui copiando de vários livros e lugares. Até anedotas dos antigos almanaques do Capivarol e do Biotônico Fontoura. Mas tem um largo trecho do "Evangelho Segundo Mateus" e um poema de Tennyson. E tem mais: a primeira carta de amor que escrevi, aos dez anos, a uma tal de Helena, que após matrimônio infeliz e infecção no ovário é hoje freira agostiniana e ora por mim.


Folha de São Paulo, 24/9/2010