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"Oh! Quanta desgraça junta!"

 

Não, ninguém precisa se inquietar, não se trata das desventuras nacionais e mundiais que nos chegam por aparelhos tecnológicos de alta definição. Esta "desgraça junta" nada mais é que um samba-canção dos tempos em que a dor de corno era mais abrangente e inspiradora.

Orestes Barbosa era bom de rima, e lá pelos meados dos anos 30 tacou esses versos, "Oh! Quanta desgraça junta/ toda a cidade pergunta/ e vai dizendo o que quer...". Não lembro o resto, sei que existe um resto, o diabo é isso, sempre existe um resto que, contrariando Shakespeare, nem sempre é silêncio.

À primeira vista, pode parecer que ando preocupado com a situação da pátria e do mundo, reconheço que há ambiguidade nesta "desgraça junta", mas por Júpiter e pelos manes protetores da nação: não, não é nada disso. Ouvi sem querer, nem sei onde, um crioulo nutrido e sábio cantar o velho samba-canção, e depois a música e a letra ficaram ressoando aqui dentro, coisa que costuma acontecer com todo mundo e comigo, há fiapos musicais que passam semanas me aporrinhando até a exaustão. É da vida.

É da vida, também, juntar desgraças. No caso do samba-canção, a desgraça junta é o grito doído do amante desprezado ou traído: quando essas coisas embananam, o cara olha em torno e só vê desgraça junta, se a amada trai ou vai embora ou faz as duas coisas ao mesmo tempo, sim, é muita desgraça, ainda que haja sol e alegria no mundo, ele se amarra na desgraça maior que traz consigo todas as desgraças menores e juntas.

Bem verdade que, olhando em torno, e mesmo sem viver os cavacos do amante em desespero, descobri que estamos rodeados por um tipo de desgraça que, por ser antiga e geral, junta ou separada, não deixa de doer e de ser desgraçada -com perdão da rima que me saiu sem querer.

Também sem querer tomo conhecimento diário do que rola por aí e fico sabendo que os bombeiros do Rio ganham menos de R$ 1.000 por mês para arriscar a vida e salvar a vida dos outros.

Da turma que veste farda por obrigação profissional, os bombeiros são os mais respeitados e queridos da população, enfrentam incêndios, desabamentos, retiram feridos dos acidentes, estão em guerra permanente contra mil desgraças que rondam o cotidiano de todos e de cada um. "Apagar um incêndio" é mais do que uma metáfora.

Também não merecíamos a desgraça de ter um governo novo, cheio de esperança e boa vontade, de repente roído e combalido por uma crise que, mesmo superada factualmente, deixará sequelas estruturais e fundas.

E outra desgraça que sempre nos ameaça: até que ponto o problema do dr. Palocci é um caso estritamente pessoal? Num passado nem tão remoto assim, tivemos o escândalo do mensalão que continua sendo negado pela estrutura do poder petista, agora dividido em duas lideranças, uma executiva (dona Dilma) e outra estratégica (Lula). Mesmo que não seja muita desgraça junta, não é sintoma de eficiência e transparência.

Voltemos ao bom Orestes Barbosa, cujos versos andam esquecidos por aí: "Para não ver nos espelhos, meus olhos muito vermelhos de tanto tanto chorar". E os delírios nervosos dos anúncios luminosos, aquele chão de estrelas ("tu pisavas os astros distraída") e a quadrinha do grande cronista que ele foi: "Meu avô morreu na luta, o meu pai, pobre coitado, fatigou-se na labuta, por isso nasci cansado". Volta e meia, sempre aparece alguém disponível para cantá-los: "Oh! Quanta desgraça junta/ toda a cidade pergunta e vai dizendo o que quer...".

Em tempo: perto lá de casa, há uma obra cheia de operários. Eles cantam ou assoviam o dia inteiro. Nunca ouvi deles -povo em estado puro- um desses sambas novíssimos e ecológicos, tipo redenção da pátria e libertação de todos. Gente que ainda não ascendeu à decantada classe média que os cientistas políticos e sociais garantem que se formou no governo passado, por conta de uma Bolsa Família que é menos bolsa e cada vez mais família.

Na hora de cantar, eles enchem o peito fatigado e apelam para o sovado, mas eterno repertório que junta todas as desgraças do ser humano numa única dor.

Folha de São Paulo, 10/6/2011