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Tanta coisa e nada

 

O dia nublado me deu preguiça de ir à praia. Como já estava no carro, peguei o túnel e fui à zona norte rever o cenário de minha infância.
 
Faço isso esporadicamente, de seis em seis ou de sete em sete anos. Intencionava tirar uma foto da casa onde nasci, levei a máquina fotográfica -a filmadora estava sem bateria.

Encontrei-a com facilidade. Tem hoje o número 306. Quando ali nasci, era o 214, segundo o cartão em que comunicaram o nascimento do filho Carlos Heitor -lá está o endereço da época.

Da vez anterior em que lá estive, há seis ou sete anos, a casa estava em escombros, toda quebrada, mas continuava em pé. Toquei a campainha, um homem veio atender. Disse-lhe o que pretendia, havia nascido ali, pensava até em comprar a casa.

Mas o homem era desconfiado, não permitiu que eu entrasse, acho que alegou ser a casa de outro, sem a licença do dono não podia permitir a visita. Tudo muito estranho, mas o que fazer? Bati em retirada.

Hoje, tive uma surpresa desagradável: a casa continua de pé, mas guardada por um muro de três metros de altura, pintado de verde, com uma porta de ferro maciça, como a das penitenciárias, e apenas um olho mágico quebrando a superfície da porta que parece guardar a caixa forte de um banco clandestino.

Da casa mesmo, só se vê o telhado. O muro protege a casa inteira, mas pela lateral pude ver a parte superior da fachada, que foi reformada. Um aparelho de ar refrigerado em cima e grades fortíssimas protegendo as janelas. Só agora, quando faço este registro, me passa pela cabeça a suspeita: tanto na visita anterior, quando o cara não me deixou entrar, como agora, a casa virou uma fortaleza. Cheguei a pensar em esconderijo de algum bando de traficantes ou de bicheiros, de gente ligada ao crime. Impossível que um morador comum, num bairro tranquilo, de gente pacata, fizesse uma casamata, um bunker.

Bem, tomei nota do novo endereço, quando tiver tempo verei se tem telefone ali. Falarei com o dono ou morador e insistirei em fazer nova visita, embora desconfie de que, da casa em que nasci, só tenham restado as paredes de sustentação. Lembro bem dela, uns quartos pintados de azul, quintal cheio de apetrechos de cozinha, acho que por ocasião de um surto de alguma febre e todos precisavam imunizar cozinhas e banheiros.

Lembro o pai, no jardim da frente, apanhando um balão que ali caiu, na tarde de um domingo. Ele estava dormindo, nós o acordamos, ele veio de pijama, calmo, coçando as costas, apanhou o balão que não era lá essas coisas. Essa lembrança eu aproveitei em "Quase Memória", mas de forma quase épica.

Lembro também da grade da frente, da barraquinha de fogos, com a lanterna vermelha, avisando que ali vendiam fogos. Era do meu irmão e até hoje é uma das minhas frustrações não ter tido uma barraquinha daquelas. Muitos garotos tinham, praticamente em cada rua havia uma lanterna vermelha acesa à noite, avisando que ali se vendiam busca-pés, rodinhas, estrelinhas, bengalas, coisas miúdas.

O irmão botava uma pelerine por causa do sereno e passava parte da noite ali, esperando os fregueses. Lembro que tia Doneta ficava com ele até a hora em que se retirava para dormir, levando a barraquinha para o quarto dele. Eu nem podia me aproximar daquele tesouro que tinha um cheiro que não esqueci, cheiro de pólvora, de cola, de papelão, de papel seda colorido.

Lembro também dos operários que calçavam a rua, eu teria dois ou três anos. Guardo a imagem de um operário com o maçarico, soldando os trilhos do bonde que por ali iria passar. As fagulhas azuladas -eu tinha medo delas? Não sei. Tinha medo, isso sim, da máquina que era um ancestral do rolo compressor, passava em cima dos paralelepípedos, com o peso do imenso rolo de aço fixava as pedras no leito da rua.

Acho que a tal máquina apitava, dela saía uma fumaça, eu tinha pavor quando ela passava pela nossa casa. Parecia um bicho, uma espécie de mula sem cabeça, um animal desgovernado que me ameaçava. Minha reação era chorar, chorar muito. Creio que essa máquina me fez medroso pelo resto da vida.

Folha de São Paulo, 9/9/2011