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Omelete de ovos de camelo

 

Não faz muito, dei um giro por terras e ares do chamado Oriente Médio, onde estavam acontecendo coisas que não me interessavam, mas interessavam à revista na qual trabalhava. Naquela época, as coisas pareciam estar melhores do que agora, com as sucessivas crises econômicas e políticas que estão acontecendo por lá. Houvera uma espécie de acordo entre Israel e Egito, o que me obrigou a uma certa permanência nos dois países.

Pouco depois, tanto o presidente do Egito como o de Israel foram assassinados por compatriotas, o que me obrigou a nova ida ao Cairo.

Apesar de tudo, as coisas por lá pareciam ter melhorado. Mesmo assim, me prometi que nunca mais pisaria aquele chão histórico, banhado por um belo rio, mas cercado pelas areias do Saara que justificam há séculos o adjetivo "escaldante": são realmente escaldantes e queimam a nossa cara, conforme atestou a marchinha de Nássara que é cantada em todos os Carnavais na base do alalaô.

Apesar das melhorias, a miséria era enorme: são milhões de cairotas espremidos entre o deserto e o mar. Também, com esse nome (cairota), tudo devia ser lucro para eles.

Em relação à visita que fizera anos antes, as coisas haviam melhorado, já não havia soldados descalços nas ruas, como nos tempos do Brasil imperial. Um amigo da Reuters me garantira que recebera um pedido de esmola de um capitão do Exército que lutara na Guerra do Yom Kippur. O Cairo é uma das cidades mais lindas do mundo e, talvez, a mais suja.

Não dá para entender: no hotel Hilton, uma rede internacional que funciona como grife de qualidade, o pó está em toda parte, o lixo se acumula nos corredores, o cheiro de camelo suado entranha dentro da gente. E lá fora pode se olhar o belo Nilo -mais belo do que o Danúbio e o Reno-, mas não se pode parar diante de um açougue. Passara uma semana tomando água mineral (da Bulgária), comendo pão vindo da França e manteiga italiana. Que diabo fora fazer lá outra vez?

Armação do destino e da companhia de navegação que escalou uma parada em Alexandria. Estava eu em sossego quando apareceram no horizonte os primeiros sinais da costa egípcia. Não, não há mais o farol nem a biblioteca que chegou a ser a maior do mundo.

Tampouco existe a Alexandria europeizada de Durrell e Dufy, uma Nice do outro lado do Mediterrâneo com seus toldos coloridos, suas avenidas, seus cafés cosmopolitas.

Alexandria era agora uma cidade cinzenta e suja, o grande porto abrigando os navios vindos de Grécia, Veneza, Odessa, Marselha e Istambul. Eu havia jurado que não desceria à terra; de repente, me deu um comichão e lá fui eu, entre italianos, franceses, alemães e americanos, assuntar a velha cidade de Alexandre. Empurraram-me dentro de um ônibus refrigerado, quis protestar, mas era tarde: o ônibus já cortava aquela franja do Saara, rumo ao Cairo.

Tentei argumentar, já conhecia o Cairo, já estivera dentro das pirâmides -uma das ações mais inúteis de minha inútil vida. Com isso, piorei minha situação: já que eu conhecia a cidade, os promotores da excursão pediram-me para ir dando explicações. Súbito, por cima de algumas tamareiras, vi os picos cor de areia das pirâmides. Sim, eu voltava ao Cairo e me sentia perdido.

Vinguei-me como pude. Ao chegarmos ao restaurante, perguntaram-me pelo prato nacional. Informei com voz de oráculo: "Aqui servem uma deliciosa omelete de ovos de camelo. Não deixem de provar, é uma rara iguaria, abençoada há séculos pelos faraós e por todas as múmias!". Uma italiana entendeu que ia comer múmia, eu a tranquilizei, não, ainda não serviam múmias, mas garanti que a omelete de camelo, além de saborosa, era rica em vitaminas e sais minerais.

Foi um nojo geral. Os garçons do Hilton voltaram para a copa levando os pratos que -por coincidência- traziam uma pasta amarelada e suspeita. Meus companheiros de viagem me acompanharam na dieta do pão francês e água mineral búlgara.

Mesmo assim, uma jovem alemã não aguentou quando, do lado de fora, passou um camelo silencioso, de péssimos dentes e hálito pior, fatigado daquele mundo de areia e sol. E, do alto de 4.000 anos de história, as pirâmides contemplaram a alemãzinha botar os bofes para fora, devolvendo a água búlgara à escaldante areia do Saara.

Folha de São Paulo, 25/5/2012