Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Um ovo e uma fritada

Um ovo e uma fritada

 

Um dos temas que mais me impressionaram quando na distante mocidade que passei num seminário foi o estudo da lei de causalidade nas aulas de lógica, tendo como base a tradicional doutrina aristotélica-tomista: posta a causa, posto o efeito; variada a causa, variado o efeito; "sublata causa, tollitur effectus", ou seja, suprimida a causa, acaba o efeito.

Alguns filósofos posteriores tiraram conclusões meio capciosas, incluindo a inexorabilidade do destino e do acaso, misturando as duas coisas de tal forma que nunca se sabe onde a causa é o destino, e o efeito, o acaso.

Moisés decidiu empreender o êxodo porque, ainda no Egito, viu um soldado do faraó açoitar um judeu? Newton descobriu a lei da gravidade porque, descansando à sombra de uma árvore, a maçã caiu em sua cara? Lord Sandwich estava com fome e botou uma fatia de carne dentro de um pão, criando sem querer o sanduíche?

Para explicar o DNA das coisas, dos muitos inventos e descobertas da humanidade ao longo dos séculos, os entendidos sentem-se obrigados a buscar as causas que determinaram os efeitos.

Causa: um estudante sérvio matou o arquiduque da Áustria em Sarajevo. Efeito: Guerra Mundial de 1914-1918. Causa: Nero incendiou Roma e botou a culpa nos cristãos. Efeito: os romanos tiveram de construir o Coliseu para que os leões da Númia comessem os cristãos.

Baseados nesta lei da causalidade, os historiadores procuram explicar fatos e versões obedecendo às regras da "posita, variata, sublata", causa que determina este ou aquele efeito da crônica humana.

Até hoje, por exemplo, psicólogos, historiadores e patologistas procuram explicar a causa que determinou o antissemitismo radical de Hitler. Falam em alguns teóricos, como Gobineau e Chamberlain.

Falam em Nietzsche e Wagner, falam principalmente no apócrifo "Protocolo dos Sábios de Sião", como fontes ou causas irracionais do ódio que provocou o holocausto dos judeus durante o regime nazista.

Os mais recentes biógrafos do ditador, depois de fuçarem documentos em posse dos russos e dos americanos, abriram duas hipóteses fantásticas. Um delas pode ter sido possível. Em seus anos de Viena, o jovem Adolf teve relações com uma prostituta judia e contraiu uma sífilis que nunca foi devidamente curada. Daí a sua teoria de que o povo judeu "infectava" o mundo.

Outra hipótese, levantada por alguns amigos de sua juventude, criou a teoria do "um ovo só". Que foi levada a sério até mesmo pelos patologistas soviéticos que, depois da guerra, examinaram os restos carbonizados do Führer.

Em seus tempos de jovem, ainda em Linz, Hitler teria apostado com os colegas que seria capaz de urinar na boca de um bode que vivia nos arredores do colégio. Desafiado, com uma das mãos abriu a boca do bode, com a outra, direcionou o jato, mas o animal reagiu, comendo um de seus testículos.

Por mais que pareça ridículo ou improvável, a lenda marcaria e explicaria não apenas a complicada vida sexual do ditador, mas seus complexos de inferioridade e sua insanidade social e política: o bode em questão pertencia a um judeu.

Os leitores poderão pensar que estou inventando coisas, mas estes dois fatos que lembrei estão narrados em biografias altamente respeitáveis, como a de John Toland e Ron Rosenbaum e alguns autores russos que confirmam a história do "ovo só", deixando para numerosos psicólogos e psiquiatras a explicação do desvio de personalidade de alguém que teve um testículo comido por um bode, que não era um bode judeu, mas pertencia a um judeu.

Bem, acredito que nesta crônica me superei em matéria de citações. Lembrei Moisés, Aristóteles, Tomás de Aquino, Isaac Newton, Lord Sandwich, Wagner, Nietzsche, Gobineau, Chamberlain, Nero, os leões da Númia, um estudante sérvio e dois autores contemporâneos.

Um prato cheio para leitores interessados no rigor histórico reclamarem inclusive da teoria do ovo só, que além de ter prejudicado a vida sexual do maior tirano da história, provou mais uma vez que pequenas causas podem produzir grandes efeitos.

Folha de São Paulo, 13/7/2012