A escritora Ana Maria Gonçalves foi eleita nesta quinta-feira (10) para a Cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras. A mineira de 54 anos sucede o gramático, professor e filólogo Evanildo Bechara, morto em maio, e se torna a primeira mulher negra a integrar o quadro de imortais da Casa de Machado de Assis desde a fundação da instituição, em 1897. Ela teve 30 votos e a escritora, professora e ativista Eliane Potiguara, 1 voto.
Atual ocupante da cadeira 20 desde a posse em 2022, Gilberto Gil celebrou a chegada de uma mulher negra na instituição.
— Isso representa que estamos vivos, permanecendo ativos nesse contexto variado de diversidades muitas e de todos os tipos: étnicas, culturais, religiosas, etc.— diz Gil, que definiu a literatura de Ana Maria como de "fôlego e muita potência".
Empossada em junho de 2024, Lilia Schwarcz acredita que a eleição da mineira abre caminhos.
— (Ela) pensa o passado, interfere no presente e faz toda a diferença no futuro. Viva Ana Maria Gonçalves que nos representa nesse Brasil que se quer, e precisa ser, mais plural, inclusivo e assim democrático.
Nascida em Ibiá, em 1970, Ana Maria trabalhou como publicitária em São Paulo, mas abandonou a profissão em 2002 e foi para a Ilha de Itaparica, na Bahia, onde escreveu seu primeiro livro, “Ao lado e à margem do que sentes por mim”. Editado de forma independente naquele ano, a obra esgotou seus exemplares por meio de divulgação na internet.
Depois disso, trabalhou cinco anos em “Um defeito de cor”, um dos romances mais longos da literatura nacional e considerado um clássico contemporâneo. Foram dois anos na pesquisa, um na escrita e dois na reescrita desta saga de 951 páginas, que repassa a trajetória de Kehinde, menina negra capturada no Reino do Daomé (atualmente Benin) e trazida como escravizada para a Ilha de Itaparica, na Bahia, aos 8 anos de idade. A história é inspirada na figura real de Luísa Mahin, importante líder da Revolta dos Malês, rebelião de escravizados que aconteceu na Bahia em 1835. Ela também foi mãe do advogado Luiz Gama, um dos mais relevantes intelectuais negros do movimento abolicionista.
— Era um livro que eu queria ter lido e não encontrei — disse Ana Maria em 2024, em uma entrevista à colunista do GLOBO (e sua nova colega de fardão na ABL) Míriam Leitão. — Um gênero que hoje é chamado de romance de formação, e eu falo, foi o meu romance de formação para mim também. Ou seja, essa história eu não conhecia. Foi um livro, é uma pesquisa e uma escrita que através do qual eu comecei a me entender como mulher negra, num país escravocrata, num país racista, num país machista.
Elogiado por nomes que vão do escritor Millôr Fernandes ao ator Lázaro Ramos, o livro recebeu o prestigioso prêmio Casa de Las Américas em 2007.
Para o presidente da Academia Brasileira de Letras, Merval Pereira, este livro a coloca entre as maiores escritoras brasileiras dos últimos 25 anos.
— Só por isso, ela merece entrar para a ABL — diz o jornalista, que ocupa a cadeira 31, salientando a representatividade da escolha. — Queremos ser reconhecidos como uma instituição cultural que represente o Brasil e a diversidade brasileira.
Até hoje, “Um defeito de cor” já vendeu 180 mil cópias e está na 46ª edição. Em 2022, ganhou um novo projeto gráfico, que com obras da artista plástica Rosana Paulino. A novidade também veio com um conto afrofuturista inédito “Ancestars”, a primeira narrativa de Ana Maria Gonçalves publicada desde o lançamento de 2006. Ainda em 2022, “Um defeito de cor” foi tema de exposição no Museu de Arte do Rio (MAR). Mais de 100 artistas, do Brasil e da África, reinterpretaram o livro em 400 obras, entre pinturas, desenhos, esculturas, vídeos e instalações.
Dois anos depois depois, em 2024, foi a vez de a Marquês de Sapucaí consagrar Ana Maria. Sua obra foi enredo da Portela, que venceu o Estandarte de Ouro, do GLOBO de melhor escola do carnaval e melhor enredo. Na época, o livro entrou na lista de mais vendido da Amazon e a editora Record precisou rodar uma nova tiragem na terça de carnaval.
A própria autora definiu o desfile como uma “catarse coletiva”. Os dois carnavalescos à frente da escola, Antônio Gonzaga e André Rodrigues, destacaram a questão da maternidade incluída no livro.
— Foi uma grande homenagem às mães negras do Brasil — disse ela, na época, a Míriam Leitão. — Foi uma grande homenagem aos filhos dessas mulheres. O livro é uma carta da mãe para o filho, e o enredo é a resposta, é uma carta do Luiz Gama para a Luísa Mahin.
Gonçalves foi escritora residente na Universidade Tulane em 2007, na Universidade Stanford em 2008 e no Middlebury College em 2009. Morou oito ano em Nova Orleans, no sul dos Estados Unidos. Por sua atuação na causa antirracista, foi condecorada pelo governo brasileiro com a comenda da Ordem de Rio Branco, em 2013.
Após voltar para o Brasil em 2014, morou em Salvador, São Paulo e atualmente fixou residência no Rio. Ela ainda escreveu as peças “Tchau, querida!” (2016), cuja leitura dramática foi dirigida por Wagner Moura, e “Chão de pequenos” (2017), dirigida por Tiago Gambogi e Zé Walter Albinati, da Companhia Negra de Teatro.
Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/07/10/autora-de-um-defeito-de-cor-ana-maria-goncalves-e-a-primeira-mulher-negra-a-ingressar-na-abl.ghtml
11/07/2025