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Apocalipse doméstico

 

Por um espaço de tempo ficará nômade: seu mundo está reduzido a escombros


-VOU LÁ fora esperar o caminhão!


Antes de ser o início de uma complicada operação, é o fim de outras operações, quando decidiram a mudança. Procurar apartamento, ver preços, tabelas de juros, escrituras, promissórias, certidões - o diabo.


Sem falar no diabo específico da mudança em si, os objetos sumindo, - onde está o barbeador elétrico? E onde se meteu o abridor de garrafas? O meu reino pelas minhas abotoaduras!


As etapas foram vencidas, palmo a palmo, marcaram o dia da hecatombe, e com a fatalidade das coisas fatais, a data fatal chegou.


-Vou lá fora esperar o caminhão!


Fica esperando. Todos os ônibus tramam contra ele e a sua mudança. A cidade inteira passa, nada do caminhão aparecer.


Volta e meia um alvoroço, é ele, é ele, está encostando do outro lado da rua, mas é um caminhão que traz biscoitos para a padaria em frente.


Até que surge o mastodonte: amarelo, alto que nem um edifício, de dentro dele saem homens suados, como se já estivessem cansados.


-Acho que é aqui.


Antes que haja alguma dúvida, ele berra:


-É aqui mesmo!


Saíram os homens, as cordas, os caixotes, os panos para proteger os móveis.


A vida do edifício pára. O elevador dos fundos é tomado de assalto por eles: colocam um calço na porta e ninguém mais usará aquele elevador até que tudo tenha terminado.


As reclamações começam, um sujeito veio entregar uma pedra de gelo no sétimo andar, haverá festa no sétimo andar, o porteiro intervém, o camarada acaba subindo pelas escadas, a pedra se derretendo, pingando água gelada pelos degraus.


Quando sobe para ver como vão as coisas, não há mais coisa nenhuma para ver: é tudo um amontoado de plantas, quadros, panelas e sacos. Lembra as mudanças da casa paterna, o pai tinha gatos, cachorros, um papagaio, um cágado, dia de mudança era uma batalha campal.


Numa dessas mudanças, os homens esqueceram o cágado na calçada e o dito cujo sumiu pela rua, foi visto entrando nuns jardins, só no dia seguinte, depois de uma expedição organizada, conseguimos localizar o cágado dentro de uma vala, de pernas para cima.


Ele não tinha cágados, mas tinha livros -e há um mundão deles.


-Seria bom o senhor lavar as mãos antes de pegar nesses livros.


O homem olha surpreendido as próprias mãos e julga-as limpas. Mesmo assim, por delicadeza, esfrega as palmas contra as calças -e aí as mãos devem ter ficado mais sujas. Ele resolve defender por conta própria a sua cidadela:


-Esse deixa que eu levo.


É uma edição de "D. Quixote", que comprara na Espanha, mais de 200 anos no lombo. Tira o "D. Quixote" das mãos iníquas que o profanavam e trata de levar a sua preciosidade.


No meio do caminho, não tinha uma pedra, mas tinha uma dúvida: sente pena dos outros livros tão queridos que ficariam inermes, à sanha daquela tropa de assalto.


O telefone toca. Uma estudante da PUC quer saber o que ele pensa de Bertolt Brecht.


-Manda dizer que eu não penso nada.


Para cooperar, ele apanha a sacola onde a filha menor guarda chapinhas de Coca-Cola. Antes de ir para a escola, ela lhe recomendara o tesouro:


-Não deixa ninguém mexer nas minhas chapinhas de Coca-Cola!


Nem o Grande Lorde que toma conta da coroa de Sua Majestade teria tamanha responsabilidade, nem ficaria tão compenetrado quanto ele, depositário da sacola com sua mercadoria ordinária e querida.


-A geladeira ficou imprensada na porta. Não sai nem entra.


-A cortina despencou.


-A empregada derramou o açucareiro no elevador.


-O guarda vai mandar rebocar o caminhão que está com as rodas em cima da calçada.


-Esse vaso de planta não é nosso, é do vizinho! Deixa isso aí!


Quando a confusão chega ao ponto mais alto, aparece um sujeito querendo vender uma Enciclopédia Britânica.


-Onde está o dono da casa?


O sujeito devia perguntar pela casa e não pelo dono. O dono ali está, óbvio. E a casa -ele se surpreende com a sua verdade- está sem casa.


Por um espaço de tempo ficará nômade, cigano: seu mundo está reduzido a escombros que descem ou se despencam pelas escadas. Até que a filha exibe, com orgulho:


-Olha, pai, achei uma abotoadura!


Folha de S. Paulo (SP) 27/7/2007