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ABL na mídia - Comunidade Cultura e Arte - Entrevista. Marco Neves: “É preferível correr o risco de dizer um erro de vez em quando do que estar sempre bloqueado pelo medo”

 

Sobre as instituições existentes para a preservação da língua, considera que uma academia que diga, “podem dizer isto, não podem dizer aquilo”, não vale a pena, mas recorda que “o português de Portugal tem a Academia das Ciências de Lisboa, que tem uma secção de letras, e o Brasil tem a Academia Brasileira de Letras. Poderia haver um funcionamento muito mais correto de todo este sistema, em que cada um dos países poderia ter uma academia para investir na criação de dicionários com boas equipas. A Ana Salgado, por exemplo, faz um excelente trabalho ao criar o “Dicionário da Academia” em Portugal. O problema é que não está sozinha, mas está praticamente sozinha. Se houvesse, portanto, uma equipa mais forte de lexicógrafos para criarem dicionários que fossem úteis, seria muito melhor”, sublinha ainda.

Quanto a alunos nas escolas falantes de outras variantes da língua portuguesa, explica que a própria origem do aluno deve ser respeitada: “No ensino básico, é claro que os professores vão ensinar o padrão do português de Portugal, mas devem ter todo o respeito e compreender a origem dos alunos. E, no ensino universitário, deve respeitar-se o padrão da língua do próprio aluno.” Marco Neves complementa ainda dizendo que “não se pode dizer a uma criança que vem de uma escola brasileira, onde aprendeu de uma determinada forma, que aquilo que aprendeu está incorreto.”

Sobre o seu recente livro, “Gramática & Pontuação: Guia Prático para Escrever Melhor” — numa conversa com a Comunidade Cultura e Arte (CCA) que passou também pela questão do acordo ortográfico, a origem da língua portuguesa e até a hipercorreção que pode levar a que se corrijam erros que não o são — referiu que “A ideia é olhar para a língua do ponto de vista da escrita, é mesmo um guia para o uso da escrita. Não quero dizer a ninguém como deve falar, ou que sotaque deve usar: isso cabe a cada um. Mas quero dar algumas ideias sobre como escrever um pouco melhor no dia a dia, mesmo que seja num e-mail, e sobre como usar a pontuação para conseguir exprimir melhor aquilo que normalmente expressamos com o tom de voz, com as mãos e com o rosto.” A ler na entrevista que se segue.

Ao preparar esta entrevista, reparei que na internet surgia muitas vezes esta dúvida — e eu própria reparei nisso pela primeira vez — se a língua portuguesa derivava do galego ou se vinha, diretamente, do latim. Como responde a esta dúvida? A questão é que o galego e o português partilham a mesma origem, certo?

Exatamente. O português, o galego e o castelhano vêm todos do latim, tal como o latim também já vinha de outras línguas. Mas a pergunta que a Ana faz é muito interessante porque tem a ver com a fase intermédia entre o latim e o que hoje é o português. Podemos ver isso de várias formas. Se recuássemos mil anos e se fôssemos ao noroeste da Península Ibérica, onde hoje é a Galiza e o norte português, e se perguntássemos às pessoas que língua falavam, elas não diriam galego ou português, provavelmente diriam algo como “linguagem”, que era o termo mais habitual. Ou seja, na Idade Média, o termo mais usado pelas pessoas para se referirem a este latim já bastante modificado muitos séculos depois era “linguagem”. Nós, no nosso tempo, é que olhamos para trás e damos nomes a essa língua medieval, que ainda não era bem português, porque o português demorou muito tempo a formar-se com as características que tem hoje e está sempre em formação: na verdade, está sempre a mudar.

Mas, no século XIX, foi criado o termo “galego-português” que era, digamos assim, um termo mais politicamente correto para englobar os dois lados, e que permitia explicar que o português e o galego têm a mesma origem. Demos esse nome, mas esse nome não era usado na altura por ninguém. Às vezes, em Portugal, chamamos “português antigo”, mas, mais uma vez, estamos a falar de uma época em que Portugal nem sequer era um país independente, por isso também não faz muito sentido chamar “português antigo”, e as pessoas também não lhe chamavam “português”. Há quem lhe chame “galego”: por exemplo, um linguista que era um bom amigo meu e que faleceu há poucos dias, o Fernando Venâncio, escreveu um livro, “Assim Nasceu uma Língua”, onde defende que devíamos chamar a essa língua “galego”, porque estávamos a falar de uma zona que era chamada Reino da Galiza. Na altura não se dizia “Galiza”, porque esse é o termo em português, mas Gallaecia, em latim, e até houve pelo menos um trovador provençal que chamou a essa língua “galego”, que se saiba, que está escrito. Portanto, com esses argumentos, o Fernando Venâncio defendia que devíamos chamar “galego” a essa língua. Não tenho nada contra a nenhum desses termos, apenas cheguei à conclusão, por causa dessas discussões na internet, de que, por vezes, pode ser um pouco enganador, porque quando chamamos “galego” a essa língua, passa-se a ideia de que o português veio do galego atual, ou seja, de que o galego de hoje seria mais antigo do que o português. Mas não é assim.

Tanto o galego atual como o português atual são línguas, ou variedades, que vieram dessa língua antiga. Chamar-lhe “galego” pode, portanto, induzir em erro. Há várias soluções: chamar “galécio”, uma adaptação da “Galécia”, por exemplo, ou simplesmente assumir que era uma linguagem que depois deu origem ao galego e ao português atuais. Não é por estar contra o termo “galego”, apenas acho que nestas discussões de internet cria-se esta ideia errada de que existia o galego atual e depois apareceu o português quando, na verdade, não foi assim: havia uma língua que depois deu origem ao galego e ao português atuais, que hoje são muito diferentes daquela língua antiga. Há, também, outra coisa a dizer: essa língua antiga era falada numa área que hoje inclui a Galiza e o norte de Portugal, no Minho. É, portanto, um triângulo que passa pelo Minho, uma parte grande da Galiza, e foi nessa zona que se formou aquilo que hoje chamamos português ou galego. Esta é, por vezes, uma discussão um pouco bizantina, porque tem mais a ver com os termos que escolhemos hoje e que podem levar-nos ao engano. Nenhum destes termos é ideal, porque “galego-português” dá a ideia de que as pessoas na altura já tinham essa noção de que era uma língua que depois ia dar origem ao galego e ao português, quando não tinham. “Português antigo” também engana, porque ninguém lhe chamava “português galego” talvez seja o mais próximo, mas também engana, porque parece que o galego é mais antigo do que o português, e também não é. “Linguagem” era, de facto, o único termo que as pessoas da época usavam.

“Nós, no nosso tempo, é que olhamos para trás e damos nomes a essa língua medieval, que ainda não era bem português, porque o português demorou muito tempo a formar-se com as características que tem hoje e está sempre em formação: na verdade, está sempre a mudar.”

Uma das características interessantes da língua portuguesa que não acontece, por exemplo, no Mirandês, porque deriva do Ieonês, foi a queda do /N/ e do /L/ intervocálicos. De que forma essa queda acabou por influenciar os sons nasais como o “ãos”, “ães” e “ões”? Houve de facto uma influência direta?

Sim, o “ão” em algumas situações. Mas a criação do “ão” é um pouco mais complicada, porque o que aconteceu foi o seguinte: quando “luna” perde o /N/ ficámos, a dada altura, com “lua”, ou seja, esse /N/ influenciou o U, mas depois essa nasalidade acabou por se perder no caso de “lua”. Não se perdeu, por exemplo, no caso de “mão”. “Mano” passou a “mão”. E esse foi um dos casos em que se criou esse “ão” através dessa queda, que deixou apenas o traço da nasalidade. Nesse sentido, sim. Mas, quanto ao “ão”, uma característica só do português, não do galego, a certa altura, mais tarde, começou a ser usado em sítios em que não faria sentido, tendo em conta essa queda mais antiga. Por exemplo, o nome “João”, esse “ão” acabou por ser uma espécie de, entre aspas, mania linguística dos portugueses que começaram a pôr “ão” em muitas palavras, mesmo que não houvesse, por exemplo, “coração”.

Este “ão” de “coração” não vem de nenhuma queda intervocálica, não é uma queda de N intervocálico, é apenas um ditongo que começou a ganhar força e foi muito usado pelos portugueses a certa altura. Ninguém sabe exactamente porquê, são aquelas tendências que as línguas ganham, de tal forma que houve uma altura na história da língua em que algumas pessoas reagiram contra este ditongo “ão”, e vários escritores sobre a língua portuguesa — não tenho nenhum nome em concreto aqui, mas posso procurar depois — escreveram contra a existência deste ditongo “ão” que começou a ser reproduzido e acabou por ser um dos factores que levou, primeiro, ao afastamento do português em relação ao galego, porque o galego acabou por perder toda a sua nasalidade, ou quase toda, portanto o galego tem pouca nasalidade. Nós ficámos não só com a que tínhamos, como ainda acrescentámos mais. Também levou a um certo distanciamento entre as falas do norte e do sul, porque no sul o “ão” é muito mais comum do que no norte, onde ainda por vezes se ouve o “om” e não o “ão”. Foi, portanto, uma invenção mais sulista. Tivemos a queda intervocálica que criou nasalidade em alguns casos, mas depois chegámos a essa nasalidade e ainda a reforçámos.

Só por curiosidade, mencionou o nome “João”. Em espanhol é “Juan” e, por exemplo, em italiano é “Giovanni”, tem dois /n/ intervocálicos.

Sim. E houve várias quedas aqui do nosso lado.

Mas sabe-se porque é que houve essas quedas? Chegou-se a alguma conclusão?

Posso dar-te outros exemplos só para explicar, não para responder directamente porque é difícil saber por que razão houve estas quedas e não houve outras. Mas, por exemplo, os nomes próprios estão muito sujeitos a muitas mudanças, por várias razões: os nomes próprios tiveram grande variação, mudavam de geração em geração, às vezes a própria pessoa usava várias formas do mesmo nome. Vou dar-te um exemplo, e voltamos a “João”: o nome “Tiago” é muito curioso, porque temos uma palavra latina que é “Iacobus”. Essa palavra “Iacobus” já vinha do hebraico, é um nome bíblico. O que aconteceu a “Iacobus”? Os sons começaram a cair muito facilmente. Eram nomes muito repetidos, bíblicos e ditos pelos falantes com muita frequência, porque eram nomes de histórias, de teatro e da missa.

A repetição era tão grande que as pessoas começaram a dizer os nomes mais rapidamente e a comer sons. Tínhamos “Sanctus Iacobus”, que passou a “Santiago”, que era “Santo Iago”:“Iago” é “Iacobus” já muito mastigado, com muitas quedas. Depois acabámos por pegar no “Sanctus” e dar o “T” a “Iago”, e ficámos com “Tiago”. No caso de “João”, aconteceu também esse mesmo processo: uma série de quedas de sons dentro do nome, até chegarmos a um nome muito mais curto do que era em latim. Os italianos preservaram mais o nome, não há muito mais a dizer sobre isso. Temos de ter em conta que a população, ao longo da Idade Média, do tempo em que passámos do latim para as línguas neolatinas e mesmo muito depois, não sabia ler nem escrever. A única coisa que ouviam eram os nomes e acaba por ser um bocado como o “telefone estragado”: iam-se deturpando, uns ouviam um nome, outros ouviam outro, e foram mudando o nome lentamente. Quando alguém começou a escrever os nomes, já estavam muito diferentes do que eram em latim.

Sim, mas é curioso que, por exemplo, apesar de já não termos o /N/ e o /L/ intervocálicos, isso acaba por influenciar o plural de algumas palavras quando terminam em “ãos”, “ões” e “ães”, mesmo quando o singular é terminado em “ão”, por exemplo: mão/ mãos; pão/pães; limão/limões. Interessante se notarmos que, por exemplo, “mão” em castelhano e em italiano diz-se “mano”, é só tirar o /n/ no plural e acrescentar o /s/. Quanto a pão, em castelhano é pan e em italiano “pane”, mas no plural é só tirar o /n/, mantém-se o /e/ como acontece em italiano e acrescentar o /s/ no plural. O mesmo para limão, que em castelhano é “limón” e em italiano é “limone”. Ou seja, pelos plurais é possível perceber-se a raiz.

O nosso plural, mesmo em palavras atuais, acaba por ter esta regra de que o /L/ e o /N/ têm de cair entre duas vogais. É curioso porque é assim: a certa altura, presume-se que entre os séculos VI e VII d.C., houve esta queda do som /N/ e do som /L/ entre vogais. Mas depois a língua importou palavras, mais tarde, muitas delas do castelhano, que tinham o /L/ e o /N/ no meio das vogais, e não os retirámos. Por exemplo, temos “lua”, mas muito mais tarde importámos “lunar”. “Lunar” mantém o /N/, se quisermos falar da letra, entre as vogais. O que se passa aqui é que ficámos com um problema que o castelhano não tem. Quando a palavra acaba em “ão”, pode haver três plurais, “ãos”, “ões” e “ães”. O que acontece é que em castelhano estes três plurais são três terminações diferentes, em português unimos o singular no mesmo ditongo, “ão”, mas os plurais mantiveram esta diferença que existia ainda no latim, ou no latim tardio, e conseguimos ver essa origem nos plurais. O que se passa é que os falantes têm na cabeça a história das palavras — não sabemos de cor de onde vêm cada uma das palavras — e muitas vezes acabamos por criar plurais a mais. Mas na maior parte dos casos só temos um plural para cada palavra, e esse plural mostra de onde a palavra vem e a origem de cada uma das palavras.

“Os nossos hábitos de leitura são muito mais baixos do que noutros países, e isso tem consequências: menos domínio da escrita, mais dificuldade em lidar com a ortografia e, não só, também com a própria língua escrita, saber explicar bem algo ou escrever de forma perceptível e útil, o que é mais difícil.”

Já falou sobre isto numa entrevista, mas acha que os portugueses dão muitos erros ortográficos? Houve um processo de alfabetização tardia que possa ter contribuído para isso?

Em todas as línguas dão-se erros, atenção. Há também outra questão. Existe um factor que não tem a ver com alfabetização, e que nem acho que tenha referido nessa outra entrevista, que é o seguinte: em cada língua, existe a ortografia da língua e as regras ortográficas.

Por exemplo, o inglês tem regras ortográficas muito mais complexas do que o português. Isto gera dificuldades muito grandes na escrita em inglês, tanto que eles têm uma coisa que nós praticamente não temos tradição, ou temos, mas muito pouca, que são os “spelling bees”, concursos de soletração em inglês. É tão difícil que uma criança conseguir soletrar uma série de palavras é visto como algo extraordinário. Este é um dos factores

A ortografia do português, apesar de tudo, é relativamente regular. Tem as suas irregularidades, mas comparando com o francês ou com o inglês, é bastante regular. É um pouco mais irregular do que o espanhol, por exemplo, ou do que o alemão, mas essa irregularidade existe e criam algumas dificuldades de aprendizagem, mas isto é normal e não é nada de dramático.

Temos sistemas de escrita como o chinês, em que não existe relação directa entre o som e o aspecto das palavras, ou melhor, existe alguma relação, mas é mais vaga. O que é que isto significa? Apesar de termos uma ortografia bastante regular, tivemos, como a Ana estava a dizer, um processo de alfabetização muito tardio: há cerca de 100 anos, estima-se que apenas cerca de 20% da população sabia ler e escrever. Isto foi corrigido e hoje temos uma percentagem muito mais alta, felizmente. Mas, por exemplo, os hábitos de leitura são muito mais baixos do que noutros países, e isso tem consequências: menos domínio da escrita, mais dificuldade em lidar com a ortografia e, não só, também com a própria língua escrita, saber explicar bem algo ou escrever de forma perceptível e útil, o que é mais difícil.

Há pessoas que tendem a idealizar o passado e dizer que houve uma altura em que todos escrevíamos bem, e normalmente fala-se daquela mítica quarta classe em que supostamente as pessoas saíam a escrever maravilhosamente bem. Mas a verdade é que, quando vemos os resultados de várias gerações, não são muito melhores nas gerações mais antigas. As pessoas costumam olhar para uma pequena parte da população que escrevia das gerações mais velhas e comparar isso com a totalidade da população mais jovem que aprendeu a escrever. Quando, na verdade, se quisermos ser justos, temos de comparar toda a população do país de forma mais genérica, e então todas as gerações têm muitas dificuldades na escrita. E até arrisco dizer — não querendo entrar num campo onde não tenho dados tão concretos — que as gerações mais velhas, muitas vezes, se olharmos para a população toda, também têm muitas dificuldades na escrita, até porque muitas pessoas passaram décadas sem ter necessidade de escrever, algo que hoje é impossível, pois todas as profissões exigem escrita.

Mas acha que os mais novos lêem mais?

Falando com alguns editores recentemente, disseram que sim, que lêem um pouco mais, um pouco, não muito, sobretudo as raparigas. Há uma diferença curiosa, não só em Portugal, mas também em outros países, em que parece que as raparigas lêem muito mais, segundo alguns estudos que vi. Houve um pequeno aumento, mas é um aumento pequeno, e a partir de níveis de leitura muito baixos.

Outra curiosidade é que os hábitos de leitura parecem aumentar até ao 6º ano e, depois, no 7º ano, começam a diminuir. Durante a adolescência lê-se menos, e depois, no ensino secundário, volta a aumentar ligeiramente, mas nunca chega aos valores do ensino básico. Isto significa que há um momento na vida dos jovens em que os hábitos de leitura estavam a aumentar, mas depois decrescem — e isto não é apenas uma questão portuguesa, é algo mais geral. Diria que tem a ver com o facto de, a certa altura, a própria vida ser uma história tão intensa que as pessoas têm menos tempo ou interesse para ler.

Mas eu diria, na minha opinião pessoal e não baseada em nenhum estudo, que neste momento, tendo em conta as redes sociais, existem canais de divulgação de livros e de leitura que não existiam para os mais novos. Isto foi feito para aumentar a leitura entre os jovens e parece-me que isso tem ajudado a aumentar um pouco a leitura nos últimos anos.

Devo também dizer que parece haver muita mais leitura em inglês. Muita gente lê em inglês em vez de ler em português, e isso também parece ser um fenómeno relativamente recente e bastante visível.

“Há pessoas que tendem a idealizar o passado e dizer que houve uma altura em que todos escrevíamos bem, e normalmente fala-se daquela mítica quarta classe em que supostamente as pessoas saíam a escrever maravilhosamente bem. Mas a verdade é que, quando vemos os resultados de várias gerações, não são muito melhores nas gerações mais antigas.”

Quanto à minha experiência, quando era mais nova e queria comprar um livro, muitas vezes optava pelo original, porque muitas vezes era mais barato.

E não só: as traduções costumam sair mais tarde. Ou seja, quando uma pessoa tem algum conhecimento de inglês, é natural optar pelo original.

Um jovem português sabe ler em português, claro, mas também sabe ler em inglês, porque teve formação para isso. Acho que isso é algo positivo. Quando sai um livro sobre o qual toda a gente fala, temos acesso à opinião de muitas pessoas de todo o mundo, através das redes sociais — já não é só o nosso grupo de amigos, é um grupo muito maior. Fala-se de um livro específico, o livro sai em inglês, pode ser encomendado e chega no dia seguinte por 12 euros, por exemplo. Ou então sai três semanas depois em português por 16 euros. É natural que a tendência seja comprar logo o livro em inglês.

Mesmo que a diferença de preço não seja grande, a diferença de tempo faz com que a pessoa compre logo, até porque muitas vezes é uma decisão de impulso. Existem alguns países e algumas editoras que tentam combater este fenómeno, fazendo acordos com as editoras dos livros, que muitas vezes são anglo-saxónicas, para lançar as traduções ao mesmo tempo, mas por cá em Portugal não vi muito isso, embora no Brasil já tenha visto. Isso já aconteceu com pelo menos um autor que conheço. Tinha particular interesse nele, o Ian McEwan, um autor muito conhecido em Inglaterra, e no Brasil um dos últimos livros saiu antes da edição original no Reino Unido, o que já foi uma estratégia para tentar combater o fenómeno de as pessoas lerem primeiro em inglês e só depois em português.

Não sei muito bem qual será o resultado disso. Não me parece que seja fácil combater este fenómeno, porque é uma combinação de vários factores: o bom conhecimento de inglês que as pessoas têm, o que até é algo positivo; os livros serem mais baratos em inglês; saírem primeiro em inglês e serem discutidos primeiro em inglês.

A única coisa que posso dizer é que estou na área da tradução, por isso estudo muito as traduções e gosto muito dessa área. Mas neste caso em concreto, penso que um dos pontos que podemos pelo menos propor para melhorar ou aumentar a leitura em português é também criar livros em português que estejam rapidamente disponíveis. É essa a forma para termos as pessoas a ler em português: chegar até elas e oferecer-lhes algo que elas queiram ler. Não é fácil.

Existe também um discurso muito forte entre quem fala sobre livros de que há quem diga que a leitura está a aumentar, mas que não são “os livros certos”. Tenho sempre alguma hesitação em saber quais são esses “livros certos”, mas diria que sim, também tenho uma série de livros que gostaria muito que as pessoas lessem mais, e gostaria que fossem mais lidos. Mas não me parece que o facto de haver um aumento da leitura de livros, em geral, seja mau, porque isso pode fazer com que esses livros que consideramos boa literatura acabem por chegar às pessoas. Ou seja, podemos dizer que seria bom haver mais leitura de um certo conjunto de livros que achamos que são boa literatura e deviam ser lidos.

Às vezes uso uma imagem que poderia ser a de um funil: para conseguirmos chegar cá em baixo à leitura desses livros, nunca vamos conseguir que toda a gente leia os livros que achamos que deviam ser lidos — e isso é natural. Mas se tivermos uma entrada maior no funil, onde mais pessoas começam a ler, a criar o hábito de ter um livro na mão, também mais pessoas acabarão por chegar aos livros que consideramos boa literatura.

Há aqui duas opiniões que se dividem: há quem ache, por exemplo, que para incentivar a leitura se deve começar cedo, no final da infância ou início da adolescência, logo com um grande escritor. Por outro lado, há quem pense que se uma pessoa começa por um livro mais “fantástico” que os adolescentes gostam, isso pode levá-los mais tarde a ganhar gosto por outro tipo de leitura mais substancial.

Diria que as duas visões estão certas, porque tenho amigos que leram grandes livros porque encontraram um grande escritor aos oito ou nove anos — não é assim tão comum, há que dizer —, mas também conheço muitas outras pessoas que começaram pelos “Cinco”, como eu, e mais tarde foram descobrindo outras coisas, ou descobriram ao mesmo tempo. Conheço pessoas que mantiveram a leitura de livros infanto-juvenis já quando estavam a ler António Lobo Antunes. Ou seja, as coisas não têm de se excluir umas às outras. Os caminhos podem passar por policiais; há algumas décadas podiam passar pelos westerns, que depois levavam a outra literatura. E penso que é importante dizer que muitas vezes a grande literatura é alimentada pelo que se cria na literatura mais popular.

Por exemplo, o “Dom Quixote” alimentou-se dos livros de cavalaria, que eram considerados livros menores, literatura não tão elevada. Mas o “Dom Quixote”, ao brincar com isso, precisou desse material. Nos livros policiais, há muitos que são só fórmulas repetidas mil vezes, mas também há bons policiais que são considerados grandes livros de literatura.

Dou como exemplo um autor que me é próximo, o José Cardoso Pires, que escreveu a “Balada da Praia dos Cães”, que parte da ideia de um policial, mas ao contrário: já sabemos quem são os culpados, e o interesse está em perceber como as coisas aconteceram. Entre outras coisas.

Ou seja, se não existisse essa ideia do policial, essa grande obra, na minha opinião, não existiria. Por isso, muitas vezes, não só para ler, mas também para escrever grande literatura, as pessoas têm de passar por todo o tipo de literatura para a conhecer e depois poder brincar com ela. Acho, por isso, que é um pouco enganador ficarmos desesperados porque muitas pessoas leem livros que achamos que não são tão bons, porque isso faz parte de todo o mecanismo literário desde sempre.

Se é verdade que quem fala a língua é a população, são os falantes, onde traçamos a linha entre o respeitar a evolução natural da língua e, por outro lado, corrigir o que achamos estar errado?

Dentro da língua existe o chamado padrão. O padrão é um conjunto de hábitos tradicionais, muitas vezes antigos, que também partem do uso dos falantes.

A não ser que queiramos defender uma língua artificial, criada de raiz, como aconteceu com o esperanto — em que primeiro se define o que seria mais lógico e só depois se constrói a língua — teremos sempre de partir daquilo que foi realmente usado. Mas, no caso do padrão, do que foi usado em contextos muito específicos: o uso cuidado da língua.

Na literatura, por exemplo, há quem defenda que deve ser ela a base do padrão, enquanto outros acham que também se devem incluir textos mais formais, como o jornalismo ou a produção legislativa. Há esta discussão: se a base do padrão deve ser só a literatura ou se deve abranger todos esses textos mais formais. Pessoalmente, acho que devia ser algo mais aberto e que contemplasse os hábitos que se foram repetindo ao longo do tempo no português mais formal.

Depois temos as regras do português formal, que vão mudando mais devagar, e temos ainda todos os registos mais informais. Então, onde está a linha? A linha depende do texto que estamos a criar. Se estou, por exemplo, a escrever uma carta para as Finanças, há regras muito claras e restritas sobre o que posso usar. Não vou escrever a palavra “bué” numa carta para as Finanças. Não tenho nada contra a palavra, e até a uso muito com amigos ou num texto literário onde faça sentido.

A questão não é tanto dizer “isto está certo” ou “isto está errado”, mas sim perceber que há textos para os quais usamos um tipo de língua e outros para os quais usamos outro tipo de língua. Isto é algo natural, que acontece em todas as línguas.

Depois há quem defenda que, por vezes, não faz mal misturar um pouco as coisas. Em contextos criativos, também concordo que não faz mal. Mas se estou, por exemplo, a redigir um relatório para a Assembleia da República, claro que vou usar outra linguagem. E nem é uma questão de ser uma “melhor” linguagem; é uma linguagem que segue uma tradição própria daquele contexto.

Na escola, as pessoas devem aprender esses diferentes registos, o que é mais difícil porque, quando chegam à escola, já sabem falar e dominam a parte mais informal da língua, aprendida com amigos e família. Aquilo que vão aprender na escola é, sobretudo, a parte mais formal da escrita, que é mais difícil não por natureza, mas porque é menos usada e, por isso, exige esforço.

Costuma-se comparar isto com a roupa: temos roupa diferente para diferentes ocasiões. Se eu aparecesse de pijama no Parlamento, podia ser uma provocação ou uma forma de chamar a atenção, e tudo bem, mas essa provocação só faz sentido porque existe antes uma regra que diz que não se vai de pijama para o Parlamento.

Se estiver em casa vestido de fato completo, também seria estranho. Portanto, estas diferenças servem os dois lados: há situações para um tipo de linguagem e outras para outro tipo. É precisamente esta separação que permite criatividade ao quebrar as regras. Se não houvesse separação, não haveria sequer a possibilidade de alguém fazer essa provocação ou usar a língua fora do formato habitual.

Sobre a hipercorreção, pode destruir a riqueza da língua?

Sim. A hipercorreção pode ser entendida de forma técnica, por exemplo, quando alguém que vem do Alentejo tenta aproximar-se do sotaque lisboeta e, ao fazê-lo, vai mais longe do que os próprios lisboetas, dizendo, por exemplo, “cêxto” em vez de “cesto”. Isto é uma hipercorreção técnica.

Mas há também aquela hipercorreção mais social e corrigir supostos “erros” que na verdade não são erros. Há quem diga, por exemplo, que não se deve dizer “já agora” porque seria redundante, “já” e “agora” significariam o mesmo. Mas “já agora” é uma expressão idiomática com um sentido diferente, próximo de “a propósito”. Se retirarmos estas expressões, perdemos riqueza linguística.

Pior! Se começamos a ter medo de usar expressões tradicionais, acabamos por falar pior, sempre receosos de cometer erros. É preferível correr o risco de dizer um erro de vez em quando do que estar sempre bloqueado pelo medo, o que até pode levar à eliminação de expressões corretas.

Sobre as instituições que temos para preservar a língua, são as necessárias e suficientes, ou Portugal deveria ter um organismo correspondente direto da Real Academia Espanhola (RAE)?

Desde que as pessoas entendam bem o que é uma academia, porque por vezes as pessoas querem uma academia que lhes diga, “podem dizer isto, não podem dizer aquilo”, e acho que isso não vale a pena.

O inglês, por exemplo, não tem academia e não lhes faz falta nenhuma. O português de Portugal tem a Academia das Ciências de Lisboa, que tem uma secção de letras, e o Brasil tem a Academia Brasileira de Letras. Poderia haver um funcionamento muito mais correto de todo este sistema, em que cada um dos países poderia ter uma academia para investir na criação de dicionários com boas equipas. A Ana Salgado, por exemplo, faz um excelente trabalho ao criar o “Dicionário da Academia” em Portugal. O problema é que não está sozinha, mas está praticamente sozinha. Se houvesse, portanto, uma equipa mais forte de lexicógrafos para criarem dicionários que fossem úteis, seria muito melhor. Poderia, também, levar a que houvesse conversações — é quase um anátema o que vou dizer — mas a acordos mais reais entre todos os países de língua portuguesa para alguma reforma ortográfica com pés e cabeça feita no futuro. Não é isso que acontece no momento. Temos uma situação de muito desequilíbrio, de falta de investimento em equipas de criação de recursos para a língua.

Não seria para termos polícias da língua para dizerem o que podemos ou não dizer, mas para se criarem bases de dados terminológicas em várias áreas técnicas. É algo feito pelas universidades, em alguns casos, mas não há, muitas vezes, ligação entre os vários países e acabamos por contribuir para que cada vez mais o português de Portugal e o português dos outros países se afastem porque cada país vai ter opções terminológicas diferentes ao longo do tempo. Se houvesse uma melhor coordenação seria bom, mas isso faz-se com investimento que ainda não existe.

“Não se pode dizer a uma criança que vem de uma escola brasileira, onde aprendeu de uma determinada forma, que aquilo que aprendeu está incorreto. O que tem de ser dito é que existem várias variedades e, estando aqui, também é bom conhecer a variedade de Portugal para poder usá-la cá, caso venha a continuar a viver no país, sem perder a variedade que já conhece.”

Estamos atualmente a enfrentar um desafio: quais são, por exemplo, as dificuldades que os alunos que falam outras variantes do português, oriundos de outros países lusófonos, ainda encontram nas escolas? Como é que os professores de português poderiam ultrapassar este desafio e incluir melhor essas variantes?

Cada país tem uma situação muito diferente. “Difícil” não era a palavra que queria usar, queria dizer “diferente”. Ou seja, o que vou responder varia muito de país para país. Por exemplo, imaginemos o caso de Cabo Verde. Cabo Verde tem uma língua nacional que toda a gente fala, com grande variedade interna, que é o crioulo cabo-verdiano, e aprende o português na escola. Talvez se pudesse assumir de forma mais clara que a aprendizagem do português é a aprendizagem de uma segunda língua e, isso, poderia levar a uma melhor aprendizagem. Digo isto porque uma coisa é aprender uma língua materna, outra coisa é aprender uma segunda língua, que até pode ser a sua língua também. Isto não significa que não sejam falantes de português como todos os outros, mas o processo de aprendizagem é diferente, dado que têm uma língua materna diferente. Mas isso depende da política cabo-verdiana, não de Portugal.

Mas quando temos uma criança brasileira que vem para Portugal, as situações são muito diferentes quando falamos do ensino básico e, por exemplo, do ensino universitário, que é onde me encontro. No ensino básico, penso que tem de haver, antes de mais, muito cuidado e respeito pelo local de onde a pessoa vem. Não me parece nada positivo — e penso mesmo que deveria ser completamente evitado — professores olharem para as diferenças entre o português do Brasil e de Portugal e dizerem que está errado. São situações que infelizmente existem e há relatos disso.

Não se pode dizer a uma criança que vem de uma escola brasileira, onde aprendeu de uma determinada forma, que aquilo que aprendeu está incorreto. O que tem de ser dito é que existem várias variedades e, estando aqui, também é bom conhecer a variedade de Portugal para poder usá-la cá, caso venha a continuar a viver no país, sem perder a variedade que já conhece. Essas pessoas serão, como se costuma dizer, “bidialetais”: saberão o português de Portugal e o português do Brasil, e isso não é nada mau.

Se estivermos a falar do ensino universitário, em que uma pessoa fez toda a sua escolaridade no Brasil e vem estudar para Portugal — e isto acontece-me diretamente, pois tenho alunos brasileiros — aí já não estamos a falar de aprender o padrão europeu da língua portuguesa, porque esses alunos já dominam o padrão brasileiro, que, em princípio, estará bem aprendido (isto depende de cada um, claro, tal como em todos os países: há quem aprenda melhor, há quem aprenda pior).

Mas não me parece nada razoável exigir a um aluno brasileiro, que fez toda a sua escolaridade no Brasil, que chegue à universidade em Portugal e tenha de passar a escrever em português europeu. Parece-me algo um pouco estranho.

E digo mais: nas universidades, cada vez mais temos o uso muito discutível do inglês como língua de trabalho em muitas disciplinas, e, de um modo geral, aceita-se perfeitamente que o aluno escreva em inglês britânico ou em inglês americano, sem qualquer drama por causa disso. Parece-me estranho que, no caso do português, haja tanto drama e não seja aceite que se escreva em português do Brasil.

Muitas vezes discuto isto com colegas, que me dizem: “Eu não tenho conhecimento suficiente para corrigir um trabalho em português do Brasil.” Tenho a dizer duas coisas: primeiro, se temos conhecimento suficiente para corrigir trabalhos em inglês — seja britânico ou americano — também podemos rapidamente adquirir o conhecimento necessário para corrigir em português do Brasil. Depois, as diferenças no padrão académico do português não são assim tão relevantes. Uma pessoa que escreva bem português académico, seja do Brasil ou de Portugal, produzirá textos que não são assim tão diferentes e que conseguimos corrigir perfeitamente.

Tudo isto para dizer que, no ensino básico, é claro que os professores vão ensinar o padrão do português de Portugal, mas devem ter todo o respeito e compreender a origem dos alunos. E, no ensino universitário, deve respeitar-se o padrão da língua do próprio aluno.

“Mas não me parece nada razoável exigir a um aluno brasileiro, que fez toda a sua escolaridade no Brasil, que chegue à universidade em Portugal e tenha de passar a escrever em português europeu.”

O uso da Inteligência Artificial (IA) para corrigir textos, por exemplo, e a forma como corrige o português pode ditar a evolução da língua? Por exemplo, já temos o “Evaristo”, a “Amália”, em português de Portugal. Como olha para estas iniciativas?

A IA tem influência de duas maneiras, como dizia. Uma delas é porque pode levar ao uso de certas expressões que são mais frequentes, porque foram mais usadas pela IA. Ou pode até acontecer o contrário: evitar certas expressões ou técnicas que as pessoas começam a associar à IA e, por isso, tentam não as usar. Por exemplo, tenho achado curioso que, recentemente, surgiu a ideia de que recorrer à tradução automática é algo muito típico da IA, e por isso há pessoas que procuram não usar tradução para não parecer que estão a recorrer à Inteligência Artificial.

Não sei exatamente em que sentido essa influência vai afetar o uso da língua, mas que terá influência, certamente terá. Também pode ter influência, tal como aconteceu com as contas e a calculadora. Hoje em dia, temos menos necessidade de fazer contas mentalmente porque temos a calculadora. Talvez, com o tempo, as pessoas passem a achar que não é tão importante saber escrever sem erros porque a IA corrige tudo. Veremos se isso vai acontecer ou não. Para já, é o que posso dizer sobre o assunto.

O centralismo português contribui para vermos certos sotaques como algo menor ou alguns sotaques continuam vivos?

As duas coisas. Acho que continuam vivos. Embora alguns estejam menos presentes, ou seja, não estão mortos, continuam vivos. Ainda temos muitos sotaques, ainda é possível ouvi-los em várias zonas do país, ainda existe diversidade linguística, mas, nas gerações mais novas, sim, há uma maior uniformização.

Também existe um centralismo muito grande em Portugal. Há um grande prestígio associado a um certo sotaque, mais ligado a Lisboa e Coimbra, e esse centralismo faz com que, por vezes, as pessoas gostem ou não gostem de ouvir outros sotaques na televisão. Acho que, de qualquer modo, vivemos um momento algo contraditório. Por um lado, temos uma maior uniformização, porque as pessoas aproximam-se mais do sotaque de Lisboa e Coimbra. Por outro lado, também penso que hoje existe uma maior consciência de que devemos respeitar a diversidade.

Talvez hoje seja mais difícil alguém vir a público e dizer: “Eu não tenho sotaque, tenho o sotaque de Lisboa” ou, dito de outra forma, “O sotaque de Lisboa é o correto e as outras pessoas falam mal.” Acho que hoje é mais difícil que isso aconteça. Mas continuará a existir. Há um nome para isto, que é glotofobia. Glotofobia é a aversão à diversidade linguística ou aos sotaques que não são considerados os mais prestigiados, diferentes do sotaque da capital. Isto é muito típico, por exemplo, em França, onde acontece bastante, mas também acontece em Portugal.

Mas, por exemplo, acha que os meios de comunicação social poderiam ter um papel mais limitado nesse sentido? Ou seja, poderíamos ver representantes com outros sotaques na televisão?

Sim, sem dúvida. Porquê? Porque, mais uma vez, já há alguns exemplos disso, já vemos em alguns canais, de vez em quando, pessoas que têm sotaques que não são os típicos da televisão, mas são casos raros. Ainda existe uma tendência muito forte para que as pessoas que trabalham na comunicação social “apaguem” o seu sotaque e assumam o sotaque típico, associado a Lisboa.

E muitas vezes, quando falo disto, há quem me diga: “Mas, para todos nos entendermos, tem de haver um sotaque que todos usamos na televisão.” E não é exatamente o contrário? Porque é que temos mais dificuldade em perceber o sotaque de São Miguel, que, como costumamos dizer, é mais fechado, do que eles têm em perceber-nos? Porque eles estão habituados a ouvir-nos, mas nós não estamos habituados a ouvi-los.

Se houvesse mais diversidade de sotaques na televisão e na comunicação social, todos teríamos mais facilidade em comunicar uns com os outros, porque teríamos acesso e exposição a esses sotaques.

Portanto, sim, acho que a comunicação social devia fazer um esforço consciente para estar mais aberta a uma maior diversidade de sotaques, e também de vocabulário em certas situações, porque penso que, para além do cliché de que existe uma riqueza na língua, isso faz parte da própria língua, de todas as línguas. Não vai desaparecer. Pode diluir-se de vez em quando, como está a acontecer, mas depois regressa.

A diversidade linguística é algo com que temos de aprender a conviver. Pessoalmente, gosto muito, acho que é realmente uma riqueza: é um cliché, mas mesmo que a pessoa não goste, a verdade é que a sociedade tem de aprender a viver com essa diversidade.

E as duas opções que tenho são: ou obrigo toda a gente a falar da mesma maneira na televisão, porque acho que tem de ser assim, porque sempre foi assim, porque sempre ouvi as pessoas falar assim; ou então assumo e mostro essa diversidade de forma mais clara, com as dificuldades que daí advêm, porque todos sabemos que, se aparecer alguém a falar com um sotaque que não é tão habitual na televisão, esse canal vai receber cartas, vai receber queixas, vai ter pessoas a dizer que não devia ser assim.

Mas é preciso aceitar isso. Defendo que as televisões e as rádios deviam ter um papel mais ativo na defesa da diversidade. E há ainda outra questão, antes de passarmos à próxima: existe, por vezes, uma certa confusão entre o uso de outros sotaques e o que as pessoas chamam de “boa dicção”.

“Ah, na rádio é preciso ter boa dicção”: Claro que é preciso ter boa dicção, mas a pessoa pode ter boa dicção com qualquer sotaque. As pessoas confundem o sotaque de Lisboa com boa dicção. Há pessoas que têm o sotaque de Lisboa e têm má dicção, e pessoas que têm um sotaque transmontano e têm uma excelente dicção. Portanto, não está necessariamente ligado uma coisa à outra.

O acordo ortográfico ajudou na uniformização da língua ou não?

Não me parece.

Porquê?

Por várias razões. O acordo ortográfico, antes de mais, limita-se à ortografia. Não é um acordo de vocabulário, não é um acordo gramatical, nem poderia ser. Quer dizer, ninguém poderia chegar e fazer uma lei a dizer: “A partir de amanhã os verbos passam a funcionar assim.” Não é assim que funciona. Mas é um acordo ortográfico.

A verdade é que a ortografia não ficou unificada. Continua a haver uma ortografia típica do Brasil, outra de Portugal. E, mais ainda, com Angola e Moçambique a não terem aprovado o acordo, continuam com a mesma ortografia de antes. Neste momento, temos três ortografias em vez de duas. Portanto, na realidade, acho que o acordo tinha esse propósito, mas acabou por criar ainda mais ortografias.

Mas o que fazemos no futuro em relação à ortografia? Acho que temos de assumir que os vários países africanos de língua portuguesa são muito importantes e têm de ter um papel e uma voz muito fortes nesta definição. Até porque poderá acontecer que, daqui a algumas décadas, o continente onde mais se fale português seja África. E, por isso, não podemos fazer um acordo qualquer. O acordo teve intervenção de Angola e Moçambique, mas todos sabemos que foi uma discussão sobretudo entre Portugal e Brasil.

Provavelmente, vai ter de ser feito um novo acordo — digo isto com algum receio, porque não costuma correr muito bem — mas um acordo que permita estabilizar a situação, que está bastante instável nesta questão.

Mas, por exemplo, regras como o abandono das consoantes mudas, não ajudaram ou não foram importantes para escrevermos de uma forma mais próxima à oralidade?

Há quem diga que não.

Por exemplo, as consoantes mudas ajudavam-nos a perceber quando devíamos abrir a sílaba anterior, não é?

Sim, hoje não temos nenhum sinal gráfico para isso. Temos o acento grave, mas o acento grave é usado apenas em situações muito particulares, por isso não temos propriamente um sinal para a abertura da vogal pré-tónica. Mas claro, as consoantes mudas serviam para isso, mas de uma forma muito inconsistente. Quer dizer, às vezes serviam, outras vezes não.

No caso de “ótimo”, por exemplo, não servia, porque já era a sílaba tónica, portanto não fazia sentido abrir. Mas o que eu diria é que, apesar disso, também não temos uma situação assim tão uniforme, porque no Brasil, por exemplo, diz-se “recepção”, por isso há casos em que mantemos a diferença. Porquê? Porque no Brasil lê-se o P, cá não.

Se fosse há 30 ou 40 anos, diria: não se faz o acordo e assume-se que a ortografia é ligeiramente diferente, também não é assim tão diferente, e ficámos todos amigos porque senão isto pode criar problemas. Mas hoje, estando já feito o acordo, estando o acordo a ser implementado no sistema educativo, temos de ter isso em conta. E para ter isso em conta, talvez uma solução possível seja parecida à da Ana Salgado, lexicógrafa da Academia das Ciências de Lisboa, proposta há uns anos: por exemplo, se uma consoante muda é lida em algum dos territórios da língua portuguesa, mantém-se, seja qual for o território. Portanto, nesse caso, “recepção” voltaria a ter o P porque é lido no Brasil. Em Portugal, haveria outros casos em que é lido cá e não no Brasil, e mantinha-se também. Essa era a ideia dela.

É uma possibilidade, mas acho que é um daqueles problemas que vamos ter durante algum tempo, porque o acordo também criou uma série de “anticorpos” a qualquer discussão sobre ortografia, e por isso não sei se vamos ter de deixar passar uma geração para podermos falar disto com calma outra vez, porque sempre que se fala do acordo ortográfico, o que temos é gritaria e pouca discussão real.

“A ortografia do português do Brasil tem muito mais pontos de proximidade do que de distância.”

Sim, porque aconteceu uma coisa curiosa: ainda há pessoas que, no fim de um texto publicado nas redes sociais, fazem questão de escrever no fim “escrito segundo o antigo acordo ortográfico”.

Às vezes também faço isso, mas isso é uma opção de cada um. Portanto, acho que desviámos a questão — vou ser honesto — porque as diferenças ortográficas que existem entre Portugal e Brasil são muito maiores no vocabulário. Na gramática, nem tanto. Não acho que a gramática seja assim tão diferente, especialmente se estivermos a falar da norma padrão. Portanto, a ortografia, na verdade, é uma questão menor.

A ortografia do português do Brasil tem muito mais pontos de proximidade do que de distância. Por isso, honestamente, acho que é um daqueles temas que ocupa muito mais espaço do que merece na discussão sobre a língua portuguesa. E acho que agora devíamos acalmar, aceitar que há pessoas que escrevem de acordo com ambas as ortografias, e esperar algum tempo até voltar ao assunto. É isso que posso dizer.

Posso falar um pouco sobre o seu recente livro, o “Gramática & Pontuação: Guia Prático para Escrever Melhor”?

Sim, porque no ano passado lancei o livro “Queria? Já Não Quer?”, acerca de mitos e ideias erradas sobre a língua, sobre algumas ideias que ouvimos e que não são assim tão corretas. Este último é uma reedição reestruturada de dois livros anteriores, o “Gramática para Todos” e o “Pontuação em Português”, que era um guia prático para o uso da pontuação, e criou-se assim o “Gramática e Pontuação: Um Guia Prático para Escrever Melhor”.

A ideia é olhar para a língua do ponto de vista da escrita, é mesmo um guia para o uso da escrita. Não quero dizer a ninguém como deve falar, ou que sotaque deve usar: isso cabe a cada um. Mas quero dar algumas ideias sobre como escrever um pouco melhor no dia a dia, mesmo que seja em um e-mail, e sobre como usar a pontuação para conseguir exprimir melhor aquilo que normalmente expressamos com o tom de voz, com as mãos e com o rosto.

Basicamente, é para ajudar as pessoas a escrever, porque estamos numa época em que todos escrevemos, algo que nunca tinha acontecido até hoje na história. Hoje em dia não há profissão em que não se tenha de escrever e, às vezes, surgem dúvidas. O livro serve mesmo para ajudar nessas dúvidas: é um recurso prático para a língua.

Matéria na íntegra: https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-marco-neves-e-preferivel-correr-o-risco-de-dizer-um-erro-de-vez-em-quando-do-que-estar-sempre-bloqueado-pelo-medo/

07/08/2025