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ABL na mídia - O Globo - Artigo Joaquim Ferreira dos Santos - Em defesa dos livros, até os de colorir

 

Desta vez é preciso anistiar Bolsonaro. Há quem esteja atualizando uma piada sobre livros de colorir e escalando o capitão como protagonista, uma associação que até faria sentido pois em seu desgoverno ele andou reclamando dos livros editados pelo MEC, que teriam palavras demais, desenhos de menos. A história, porém, pertence a um militar anterior.

A primeira vez que ouvi a anedota ela era estrelada pelo general João Figueiredo, uma espécie de primeiro Bolsonaro, um cavalariço escalado por seus colegas para em 1985 encerrar a ditadura aos coices. “Me esqueçam!”, vociferou o general ao deixar o cargo. Quarenta anos depois, é impossível cumprir sua ordem porque a piada em que está inserido lhe faz toda justiça e permanece mais atual do que nunca.

Certo dia lá estava o Figueiredo naquele estilo que lhe era próprio, sempre pê da vida – dizia preferir cheiro de cavalo ao do povo. Foi então que alguém lhe perguntou o que acontecera, por que, sua excelência, parecia estar mais mal-humorada do que nunca? O general desabafou:

“Um ladrão entrou na biblioteca do palácio e, olha só que sacanagem!, roubou meus dois livros”, choramingou. “Um deles eu nem tinha terminado de colorir.”

Com o verde-oliva pontilhado de galões dourados e montado num cavalo alazão de antolhos azuis, o general saiu de cena, mas os livros de colorir continuam entre nós, ursinhos sempre poderosos. Eles agora estão em papel de alta qualidade, quase uma tela de pintura, e devem ser preenchidos pelos degradês de uma fábrica de canetinhas caríssimas. O general morreria de inveja das novas cores. As preferidas da minha neta Vera, de 10 anos, são “canela quente”, “lavanda sonhadora” e “dark blue light”.

Na lista geral de livros mais vendidos no país, publicada semana passada pelo site Publishnews, os três primeiros colocados são esses de colorir fofuras tranquilizadoras, desenhadas pela americana Abbie “Bobbie” Goveia, a criadora da marca Bobbie Goods. Os outros sete são de autoajuda, entre eles alguns da série “Café com isso”, “Café com aquilo outro”. Sim, estes últimos são livros ao estilo tradicional, escritos com palavras, mas todas elas também têm o fito ternurinha de tornar a vida mais colorida, mais tipo assim “sunshine yellow” ou “vivid pink”.

“Um país é feito de homens e livros”, disse Monteiro Lobato, e ele concordaria que numa estante cabem tanto os de unicórnios pintados com o azul-da-seda-que-envolve-a-maçã e também os que ajudam o leitor a superar o medo de não conseguir (“Mais esperto que o diabo”, sexto lugar na lista dos mais vendidos). Livros não devem ser submetidos a hierarquias de valor literário, indicados por um generalato de sabichões ou julgados pela cor da canetinha. E já que o parágrafo começou com uma citação, agora fecha com uma de Castro Alves: “Bendito o que semeia/ Livros à mão cheia/ E manda o povo pensar”.

Eu acho que todo livro ajuda (obrigado Machado, Annie Ernaux), todo livro é um arco-íris (obrigado Sabino, Hemingway), e aproveito o ensejo para saudar a nova Capital Mundial do Livro, a cidade do Rio de Janeiro. Que seus ladrões continuem de moto atrás dos celulares alheios e, por favor, não façam como o do general – deixem em paz os livros que me colorem a vida.

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/joaquim-ferreira-dos-santos/coluna/2025/04/em-defesa-dos-livros-ate-os-de-colorir.ghtml

29/04/2025