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ABL na mídia - O Globo - ‘Floresta é o lugar onde a vida acontece’, disse Ailton Krenak em entrevista de 2019

 

Uma das grandes lideranças do país, fundamental na Assembleia Constituinte, Ailton Krenak foi o primeiro indígena eleito para a Academia Brasileira de Letras. Ele tomou posse no ano passado e concedeu esta entrevista ao GLOBO em 2019.

Deixar a mansidão do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, para aterrissar no Rio, na hora do rush de uma segunda-feira chuvosa, e ir direto para uma entrevista, exige uma dose de complacência do pensador e ambientalista Ailton Krenak .

“Acho que não pensei direito quando topei”, diz, com humor e toda serenidade do mundo, o líder indígena de 66 anos. Depois de se aninhar no sofá de uma casa de vila na Gávea e de inalar um pouco de rapé (pó feito com folhas de tabaco), Krenak faz as pazes com o cansaço. Logo está dando corda aos pensamentos que forjaram o elogiado livro “ Ideias para adiar o fim do mundo ”, lançado em 2019.

Segundo Krenak, é preciso entender a floresta como um mundo repleto de humanidades, e não um “arranjo de árvores” ou uma fonte de recursos. Na visão do ambientalista, autor de quatro livros, militante da questão indígena há quatro décadas, a sociedade está imersa numa “ecologia do desastre”, que normaliza tragédias como o derramamento de óleo no Nordeste.

Seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” critica a Humanidade que exclui povos originários, como caiçaras, indígenas...

Essa ideia de Humanidade coloca os povos que vivem da terra numa borda, como se o planeta tivesse seções. Enquanto uns habitam, outros perambulam, zumbizando na marginalidade. Mesmo quando se tenta abrir o clube, levando a esses povos saneamento ou saúde, isso é feito como uma dádiva, não uma experiência de compartilhamento. É uma humanidade idealizada, porque se você apertar, não tem os valores que prega. Essa realidade gera uma fixação por realização individual. E na busca pela realização individual, a pessoa quer que o mar se dane, que a floresta se dane. Se ela se safar, o mundo pode afundar. Essa radicalização me deixa desolado. Temos chance de conhecer uns aos outros ou vamos aprofundar o individualismo?

Como chegamos a essa tensão?

As gerações passadas encomendaram esse mundo que agora temos que roer. A provocação é justamente perguntar: “Que mundo nós estamos encomendando para quem virá depois?”

Você vê um movimento de reação das gerações mais novas?

A reação de parte das crianças, dizendo que a geração mais velha, de seus avós, traiu a geração deles, não pode ser ignorada. Estão dizendo isso aos milhares. Vejo crianças deixando de ir à escola na sexta-feira, parando para desprogramar esse mundo. Importante desprogramar esse mundo pra programar outro. Estão dizendo: “Chega de consumo, de empapuçamento e extração. Quero outra coisa”. Eles podem diminuir a velocidade da deterioração do planeta. É como se entendessem que a Terra tem limite. A governança dos adultos não passa a mensagem de que estão empenhados em melhorar. Com isso, as crianças dizem que o mundo adulto é cínico. Não se desapega de um modelo suicida.

Muitos até mesmo negam que o mundo esteja em perigo...

São quase sempre homens mais velhos na cúpula do poder. Pra eles, não faz diferença se a Terra ficar inabitável. Eles fazem uma estação em Marte. Quando eu era jovem, na década de 60, via com admiração a disposição do homem de ir ao espaço. Depois, passei a ver de maneira crítica. Por que não estávamos interessados com o que acontecia na Terra? Na década 80, saiu o Relatório Brutland, dizendo que estávamos na rota do perigo. O esquizofrênico é que se cria tecnologia pra conquistar o espaço, mas não se é capaz de constituir uma cosmovisão (visão de mundo, das relações humanas e do papel do indivíduo na sociedade). Se estivessem interessados, saberíamos muito mais sobre a Terra.

Mas já existe a consciência de que o planeta não é infinito e que estamos causando danos à Terra. Os povos da floresta correm um risco maior?

A ideia de um planeta infinito mudou, mas, com isso, muda a visão sobre o acesso das populações tradicionais a seus territórios. Ora, o discurso do governo brasileiro vai contra a Constituição Federal, que assegura aos povos indígenas as suas terras. O governo diz que vai rever isso. Só a manifestação pública dessa vontade já é grave, cria constrangimento para todos. Como o governo de um país ataca sua população originária acusando-a de não colaborar com o progresso? De não ceder seus rios para hidrelétricas ou suas terras para mineração? Como se houvesse uma cruzada para salvar o capitalismo falido arrancando tudo da terra. Esses povos sempre dirão que a terra é nossa mãe e não está à venda.

Por que a sociedade ocidental não enxerga sentido na forma de vida dos povos tradicionais?

Encaram como uma ideia de que já passou. Como se o humano vivendo e esperando os ciclos da natureza, no litoral, na floresta ou onde quer que esteja, pudesse sair e produzir vida em outro lugar. Por isso, tomam suas terras. E essa coisa corporativa vai virando dona de tudo. Já ouvi dizer que o índio fica na floresta sem fazer nada. Mas eles fazem o que fazemos de mais importante: viver. Estudos já mostraram que, em quatro horas de trabalho, alguém que vive colado no mar, na floresta ou no rio consegue o que precisa pra comer, se vestir, se curar, pra tudo. O resto do tempo ele vive. As pessoas acham que isso é fazer nada. Elas têm que inventar algo pra fazer depois de fazer tudo o que precisam.

Há uma falta de entendimento do que é uma floresta?

É o lugar onde a vida acontece, e não uma fonte de recursos. Quando digo que a floresta é um mundo, as pessoas acham uma simplificação. Porque nunca viram a floresta. Assim como muita gente nunca viu o oceano. A compreensão da floresta como algo vivo implica num respeito que estabelece uma ética da existência, a reciprocidade com a natureza. Esse modo de vida proporciona uma prosperidade que não é econômica.

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/100-anos/noticia/2025/07/28/floresta-e-o-lugar-onde-a-vida-acontece-disse-ailton-krenak-em-entrevista.ghtml

28/07/2025