Ela é como uma eremita”, disse Livia Vianna, editora-executiva da editora Record, enquanto acompanhava a autora Ana Maria Gonçalves na 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty. Até pouco tempo atrás, a autora não tinha telefone celular. Mesmo depois de aderir ao aparelho, não usa Whatsapp e muito menos Instagram (sua conta oficial na rede é abastecida por uma equipe). A comunicação com ela, portanto, não é nada facilitada, e sua presença em eventos é rara. “Eu insisti muito para que ela estivesse aqui”, diz Vianna. “É muito importante ela estar onde o público leitor dela está.”
Gonçalves esteve na Flip a convite da Esquina piauí+Netflix e participou também de eventos nas casas Record e Folha de S.Paulo.
Suas últimas participações na festa aconteceram em 2017 e 2019. Na primeira, compôs com a também mineira Conceição Evaristo uma mesa que se tornou uma das mais lembradas do festival, na qual as duas autoras discutiram questões relativas à literatura negra feminina contemporânea. Pouco antes de sua última fala ao público na edição deste ano, perguntei a ela quais são suas percepções e se houve mudanças em termos de diversidade no evento. “Acho que as coisas mudaram porque agora o público preto se vê”, respondeu.
As mesas das quais participou estão entre as que registraram as maiores filas na Flip. Na Esquina piauí+Netflix, a primeira pessoa chegou com três horas de antecedência – e logo viu chegarem outros leitores.
Ao caminhar pelas ruas do Centro Histórico de Paraty (chegou a visitar alguns bares e celebrações) era sempre abordada por fãs.
O destaque de Gonçalves tem sido crescente. Em julho, a Academia Brasileira de Letras a consagrou imortal. Meses antes, o jornal Folha de S.Paulo elegeu o romance que a projetou, Um defeito de cor, como o livro brasileiro mais importante deste primeiro quarto de século.
No penúltimo Carnaval carioca, a Portela adaptou a obra de quase mil páginas para seu desfile no Sambódromo (obteve a quinta colocação do Grupo Especial). Sentada num trono em um dos carros alegóricos, a escritora considerou aquele um dos grandes ápices de sua carreira. “A ABL não chega nem perto do que é ser consagrado na Avenida”, declarou no palco da Casa Record.
Um defeito de cor narra a vida de Kehinde, encruzilhada por um sem-número de acontecimentos históricos do século XIX (o transatlântico escravagista, a Independência do Brasil, a abdicação de Dom Pedro I etc.). O sucesso foi crescente, e com o desfile na Sapucaí foi parar na primeira posição entre os mais vendidos da Amazon.
Gonçalves já havia lançado um primeiro romance em 2003, intitulado Ao lado e à margem do que sentes por mim, que teve uma tiragem modesta de mil exemplares. Na época, ela já se dedicava à pesquisa e escrita da obra que a colocaria nos holofotes. “Eu não me envergonho, mas não me orgulho dele. É um livro muito apressado escrito por uma mulher de 29 anos.”
Ao que tudo indica, como declarou na Flip, pretende reeditar a autoficção. Há mais novidades em seu radar: um livro sobre peri e pós menopausa. “Uma experiência transformadora na minha vida.” Ela descreve a fase como algo que a atingiu fisicamente e psicologicamente e, por isso, decidiu iniciar o projeto que hibridiza ficção e realidade.
Quem esbarrou na escritora pela Flip, provavelmente a viu se abanando com um leque ankara, que forma um círculo completo. É bonito, e ainda ajuda a aliviar os sintomas da fase em que vive, a despeito do friozinho brando em Paraty. Como uma aluna tímida prestes a apresentar um trabalho diante dos colegas de sala, a escritora mal conseguia prestar atenção em minhas perguntas, enquanto tentava se resolver com o suor que empapava seu rosto. Dali dez ou quinze minutos, apresentaria-se a uma plateia lotada de pessoas ávidas por ouvir o que ela tinha a dizer, na Casa Record, na noite do sábado. “Rainha”, pipocaram gritos de toda parte aclamando Gonçalves quando entrou por uma porta lateral. “Eu não tinha ideia do que aconteceria com esse livro.”
Para quem gosta da reclusão, a lotação das ruas de Paraty causou algum desconforto. “Está tudo muito cheio, né?”, ela me disse, demonstrando aflição.
Ao falar sobre a “imortalidade” na ABL, afirmou: “Não estou chegando lá só eu. Tem muitas que, antes de mim, já deveriam estar lá dentro. Então, estamos entrando juntas”. Ela contou que, antes de lançar a candidatura, falou com a escritora Conceição Evaristo, um nome sempre lembrado para a academia. “Antes de tomar qualquer decisão eu consultei a Conceição. É uma candidatura coletiva – simbolicamente, estamos entrando juntas. Mas falar da representatividade já não basta. Não dá mais para ser a única representando uma multiplicidade de pessoas. Não estou lá para representar. Quero estar lá para produzir mais presenças.” E declarou também: “Sou a primeira, mas vou agir para que não seja a única.”
Em 2018, Evaristo candidatou-se à ABL, mas teve somente um voto. “Apesar dela não ter entrado, eu acho que foi uma candidatura vitoriosa no sentido de mostrar, tanto dentro da ABL, quanto para a população brasileira, o quanto a academia não era representativa. Não havia nenhum pingo de diversidade ali dentro”, disse a autora.
Na Esquina, Gonçalves contou sobre o processo de escrita de Um defeito de cor. “Eu sou uma reescritora”, ela disse, ao citar as 19 versões da obra. Entre seus editores informais, estiveram sua mãe e o jornalista Millôr Fernandes, que simpatizou com o primeiro livro publicado de maneira independente e decidiu ajudá-la na jornada de transformar as 1400 páginas do original em um trabalho mais polido. Fernandes e Ana Maria conversavam, como conta a escritora, aos domingos, por telefone. Em relação à mãe, diz que a considera uma leitora ideal – que, na época, acompanhava a feitura da história como uma novela.
Esse processo criativo que funciona feito um vai–e-vem toma conta, inclusive, de novos projetos. Há uma série de ideias engavetadas que, cedo ou tarde, ressurgem. Havia uma avidez por parte do público para saber o que está por vir. Livia Vianna afirma que a autora não se deixa abalar pela pressão. “Eu vejo na Ana uma tranquilidade muito grande.”
Matéria na íntegra: https://piaui.folha.uol.com.br/a-abl-nao-chega-nem-perto-do-que-e-ser-consagrado-na-avenida/
04/08/2025