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Aquele homem

 

Saltei do carro e comecei a caminhar pela calçada. Um desconhecido vinha em sentido contrário, quando deu comigo fez cara de espanto, quase de estupor. Fosse outra a situação, eu lhe ofereceria um copo d'água, para lhe amenizar o susto. Dizem que um gole faz bem.

Poderia também tomar satisfações, afinal, ainda que seja um fantasma, considero-me um fantasma inofensivo. Percebendo que eu também ficara espantado com a reação dele, explicou-se: "Você existe mesmo!"


Nada mais disse e nada lhe perguntei. Seguimos nossos caminhos e eu fiquei a pensar naquele encontro de rua com um desconhecido. A constatação a que ele chegara (a de que eu existia mesmo) me pareceu ambígua. Podia ser de admiração ou de repúdio.


Analisando melhor o encontro, descartei a admiração. A cara do sujeito não era lá essas coisas. Quando vemos uma mulher bonita, bonita demais, podemos pensar dentro de nós mesmos: "Isso existe mesmo!" Acontece que não sou mulher nem bonito, a exclamação do sujeito não podia ser por esse lado.


Sobrava aquilo que chamam de "alternativa". Foi como se o desconhecido encontrasse, no largo do Machado, à luz de um dia luminoso de maio, um lobisomem, a mula-sem-cabeça, o Abominável Homem das Neves aclimatado para a calçada cheia de sol de um país tropical.


Declarei acima que não sou bonito, mas que diabo, não chego a ser horrendo, que me lembre, nunca assustei criancinhas, que eu saiba, nenhum pai ameaçou seus filhos dizendo: "Se não ficar quietinho, vou chamar aquele homem!" Aquele homem seria eu.


Cheguei ao escritório sem entender o pasmo que provocara num desconhecido. Não lhe guardara o rosto nem o feitio geral, era apenas um transeunte que vinha em sentido contrário, certamente um homem honesto, marido extremoso, pai exemplar. Após muito meditar, cheguei a uma conclusão: "Talvez ele tenha pensado que encontrou o Severino".


Folha de S. Paulo (SP) 30/5/2005