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O filme e o livro

 

Não me incluo entre os devotos de Mário de Andrade, mas considero sua melhor obra, "Macunaíma", um dos dez livros mais importantes da nossa literatura, indispensável ao conhecimento de nossa alma cultural e social.


Daí que assisti a algumas poucas filmagens da obra homônima, feita por Joaquim Pedro de Andrade, com quem pouco antes dividira uma cela no quartel da PE. Vibrei com o seu filme, assisti-o diversas vezes e sempre o colocava entre os dez melhores filmes nacionais.


Outro dia, pererecando nos canais da TV, peguei o início do filme. A cópia miserável, o som inaudível, a interpretação exagerada dos atores, tudo me fez detestar o filme, salvando uma ou outra cena, além da trilha musical, bem escolhida e inteligente.


Confesso que não suportei o filme todo. Em homenagem ao Joaquim Pedro, mudei de canal, mas, de repente, me deu vontade de pegar o livro de Mário de Andrade na estante.


Ali estava, como sempre esteve, o momento de gênio de um autor muito badalado, mas que nunca fez parte do meu olimpo particular. O texto permanece o mesmo, acho até que se engrandeceu com o tempo. "Macunaíma" me parece um dos poucos romances (ou rapsódias) da literatura universal que soube envelhecer com dignidade.


O mesmo não aconteceu com o filme, em que pese o grande talento e o bom gosto aristocrático e cultural do Joaquim Pedro. Em parte, a qualidade material do filme perdeu-se com o desgaste do tempo. Os processos técnicos para revitalizar as obras-primas do passado nem sempre atingem seu objetivo, melhoram a qualidade da exibição, mas escancaram o conteúdo ultrapassado.


Já o romance, obscuro nas estantes muitas vezes empoeiradas ou desdenhadas, conserva a força ou a debilidade dos autores. No caso de "Macunaíma", é uma rapsódia eternamente atual, pois pega o brasileiro no que ele tem de mais profundo e intransferível, sua preguiça, sua esperteza inútil, seu sonho nunca alcançado.




Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em 19/02/2004

Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em, 19/02/2004