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Uma Carta Fascinante e Sem Fim Enviada ao Futuro

 

 

Os “Ensaios” de Montaigne dão a impressão de que foram escritos para o nosso tempo, em pleno século XXI, tal o frescor e a contundência que se desprendem de sua forma de pensar. Hoje, como em meados do século XVI, as certezas se mostram voláteis e os valores mal iniciaram o processo de transmutação. Vivemos um tempo grávido de futuro, que se prolonga indefinido nas dores de um parto que não vem. E nem sabemos dizer minimamente quem somos. Convictos, muito embora, do que não queremos, e assaltados pelas dúvidas que nos incitam a um misto de entrega e rebelião, no meio do caminho, entre utopias à deriva e a âncora relativa da subjetividade, antes de naufragarmos, longe de um espectador. Não somos capazes de reunir os nossos fragmentos, senão através de uma segunda vida paralela, projetada no espaço virtual. Como diz Montaigne:

“Somos todos constituídos de peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e os outros”.

Montaigne viveu a fundo nossas contradições. Sua obra possui uma beleza serena e severa, escrita num século devastado pelas guerras de religião, suspenso entre novas e intrigantes geografias, que se estendem ao céu, aos planetas e às estrelas, na medida que a Terra aos poucos se descentra. Montaigne busca entender o mundo através de sua janela, na colina onde repousa o castelo de sua propriedade, elaborando a apologia das diferenças, como o sempre visitado capítulo dos canibais. Viveu a solidão povoada de vozes — que o trato com os livros pressupõe —, mas não se furtou aos apelos do mundo, às lides do campo e da Corte, que o convocavam e a que respondia com ímpeto e obstinação.

Os “Ensaios” apontam para um horizonte seminal de modernidade, através do encontro de antigos e modernos, sem querelas, livres de pedantismo, levados por uma perspectiva aberta, sitiados pela dúvida, que se tornaria central no “Discurso do método”. A reflexão de Montaigne é também um exercício tradutório em duas vias, a da cultura helênica e romana para o fim do Renascimento, como também a de sua própria biografia, traduzida para o futuro. Como se fosse um manuscrito dentro da garrafa, carta fascinante e sem fim, de cujas páginas nos tornamos locatários.

Trazer Montaigne para a língua portuguesa, como quem abre aquela garrafa, significa realizar uma tradução de múltiplas saídas. E sem perder a urgência da mensagem, a força do diálogo em que se apoiam os “Ensaios”.      Seus tradutores no Brasil partem da premissa de maior legibilidade, como deixam ver, cada qual a seu modo, os trabalhos de Toledo Malta, Rosa Freire d’Aguiar, Rosemary Abílio, que divergem na aplicação pontual daquele princípio, segundo o volume das frases e os matizes das palavras, que tantas vezes os aproximam e distanciam.

Sérgio Milliet mobilizou as energias poliédricas de sua ampla cultura ao redor da transparência de Montaigne, a tal ponto que decidiu traduzir as longas citações originais do latim e do grego para o português, em favor de um fluxo que favoreça o leitor de nosso tempo, sem maiores concessões, entretanto, como se reescrevesse para um Montaigne brasileiro, e sobremodo impaciente, como se declara o autor dos “Ensaios”, quando anota:

“as dificuldades com que me deparo lendo, não me preocupam exageradamente; deixo-as de lado após tentar resolvê-las uma ou duas vezes. Não sou capaz de nada que não me dê prazer ou que exija esforços, e atardar-me demasiado em um assunto, ou nele me concentrar demoradamente, perturba minha inteligência, cansa-a e me entristece”.

Há também um lado menos visível no texto em português de Milliet, que consiste em reordenar o timbre e a costura dos períodos, o laço que os envolve, aperta e distribui, na preferência dos vocábulos de uso corrente, nos intervalos feridos de silêncio no francês antigo.

A oficina tradutória de Milliet corresponde a um duplo sinal, do modernista convertido e do leitor dos clássicos. Duas atitudes sobrepostas, nem sempre pacíficas ou harmoniosas, dois registros que se defrontam na edição desse Montaigne brasileiro, sob o signo de curiosos ruídos e inquietudes semânticas.

Traduzir é uma das fases essenciais na preparação do diálogo, o desenho de uma ética por onde se espraia o encontro de duas ou mais línguas, como quem escreve uma carta cheia de rasuras e correções, nos limites da margem e nas dobras do papel, segundo confessa Montaigne: “escrevo sempre minhas cartas às pressas. Habituei os altos personagens que me conhecem a admitirem minhas rasuras e correções, bem como meu papel sem dobra nem margens”.

O tradutor dos “Ensaios” não passa de um carteiro imaterial, empenhado num encontro sem fim, na convergência de dois universos paralelos, um diálogo obstinado, a renovar-se no presente, enquanto espera leitores que ainda não vieram.

O Globo, 22/04/2017