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A tecnologia e o grito de eureca

 

Bons tempos os que vivemos, em que tudo tem prazo de validade e tudo pode ser descartável. Meu pai herdara uma máquina fotográfica do meu avô, foi com ela que registrou os primeiros passos de seus filhos, o batizado, a primeira comunhão, chegou mesmo a fotografar o casamento do irmão mais velho com o mesmo equipamento, que era chamado de "caixote". Ainda tenho fotos tiradas por aquela ancestral das atuais câmaras digitais, que duram o espaço daquelas rosas de Malherbe.


Apesar de tanto e tamanho progresso tecnológico, muita coisa ainda precisa ser inventada e fatalmente o será; já disseram por aí que tudo o que homem pensa, mais cedo ou mais tarde pode ser realizado materialmente. A viagem à Lua, o submarino, aquele termômetro dentro do peito do peru para apitar na hora em que estiver pronto - são muitas as invenções do engenho humano, desde a roda dos sumérios ao "Jingle Bells" tocado nos celulares durante as festas do Natal.


Evidente que faltam muitas coisas, como um bom detector de mentiras para garantir a verdade em suas múltiplas variedades, desde a desculpa da sogra doente para não irmos àquela missa de 7º dia até os depoimentos prestados nas CPIs do Congresso. Há um embrião científico para captar mentiras, mas é rudimentar, difícil de operar e de interpretar, o sujeito fica amarrado por fios e eletrodos que registram batimentos cardíacos, pressão sangüínea, dilatação das pupilas, sei lá, são meio furados, de credibilidade duvidosa.


Brevemente, ao nascer um novo humano, será instalado em algum lugar de seu corpo um chip de duração ilimitada que registrará imagem e som de tudo o que ele fizer na vida ou que os outros fizerem com ele. O assassinado terá registrado o seu assassino, o ladrão gravará forçadamente o seu roubo, não haverá espaço para a mentira, o falso testemunho, o perjúrio. A esposa infiel não poderá negar o adultério -bons tempos virão, mas espero que não venham já.


De minha parte, já confessei que fiquei pasmo com uma das invenções do admirável mundo novo que muito me beneficiaram. Em criança, obrigavam-me a engraxar os sapatos, era quase uma exigência da higiene corporal andar de sapatos engraxados. E as latas de graxa eram insidiosas, custavam a ser abertas, batia-se com elas em algum lugar duro, ficavam amassadas e aí mesmo é que se recusavam a abrir.


Até que um gênio, maior do que Leonardo, maior do que Edison, inventou uma pequena alavanca lateral na parte de cima da lata. Se Arquimedes garantiu que levantaria a Terra se tivesse um ponto de apoio no espaço onde pudesse colocar uma alavanca, eu me senti um Arquimedes do Lins de Vasconcelos quando abri a primeira lata de graxa com a alavanquinha de metal ordinário que me abriu, mais do que uma lata de graxa, o território mágico da tecnologia moderna.


Mesmo assim, desconfio que falta muita coisa a ser inventada. Tenho um amigo que garante a facilidade com que poderemos viajar sem avião, trem, carro ou a pé. Aproveitando a rotação do nosso planeta, uma almanjarra qualquer que ainda será criada nos elevará a uma certa altura, lá de cima esperaremos que a Terra gire até ao ponto onde queremos saltar. Posso sair daqui da Lagoa ao meio-dia e meia e almoçar na Groenlândia a uma da tarde, sem esforço, sem apertões e por baixo custo. O problema é que - Deus é testemunha - não tenho nenhum interesse em almoçar ou jantar na Groenlândia.


Tive um amigo, professor e crítico de arte que, depois dos 50 anos, escreveu um tratado propondo a revogação da lei da gravidade para os maiores de sua idade. Seria uma revogação proporcional ao número de anos acumulados: aos 50, a gravidade seria reduzida para 50%. Aos 60, a redução seria 10% maior. E assim, se o cara insistisse mesmo em viver, aos 100 anos teria gravidade zero, como os astronautas e os corpos que flutuam no espaço.


Ele conversou comigo, mas não me convenceu. Achei um bocado difícil abolir a gravidade assim, sem mais nem menos, embora apreciasse o benefício resultante. O Paulo Francis, por exemplo, que andava pelos 60 e tantos anos, reclamava que, ao tomar banho, o sabonete sempre escorregava de suas mãos e era difícil resgatá-lo no ladrilho molhado, escorregadio como uma lesma oval e ensaboada. O bom Francis amaldiçoava a lei da gravidade com a mesma indignação do professor de arte acima citado.


Daí que estou pensando numa solução de meio termo, acredito que mais viável do que a pura e simples abolição da gravidade. Seria o sabonete magnético. Uma luva na mão esquerda com um elemento metálico e, dentro de cada sabonete, outro elemento metálico. Poderíamos esfregar nosso corpo de alto a baixo, suas saliências e profundezas, sem necessidade de cairmos de cócoras e ficarmos catando o sabonete como certos goleiros catam seus frangos.


A posteridade ainda me fará justiça por ter tido esta idéia que me veio durante o banho de ontem. O citado Arquimedes ali de cima também teve idéias enquanto tomava banho e saiu nu pelas ruas de Atenas, gritando "Eureca! Eureca!". Prometo não fazer isso.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 13/1/2006