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A Bela e a Fera

 

Um dos desejos de minha infância foi habitar um palácio como o de "A Bela e a Fera", evidente que sem a fera. Tinha tudo, do bom e do melhor naquele palácio. As luzes se acendiam à passagem da moça, a mesa estava sempre posta, havia solidão e silêncio, ninguém enchia o saco dela, a fera providenciava tudo e ainda fazia o favor de não aparecer, não queria assustá-la.


Eu imaginava um palácio mais modesto, seria a minha própria casa, apenas com um acréscimo: em todas as paredes haveria umas torneirinhas que despejariam guaraná no meu copo. Eu era louco por guaraná, ficava triste quando tomava um, confinado numa garrafa banal, que mal dava para encher um copo.


Queria mais e muito, daí que sonhava com torneiras em todas as paredes, bastaria abri-las e o guaraná geladinho jorraria para matar a minha sede e me tontear de prazer.


A injúria do tempo, somada ao desgaste dos anos, sepultaram o delírio, mas fui fiel a ele, não tive outros pela vida afora. Esqueci a bela e a fera, o palácio encantado, as torneirinhas jorrando guaraná.


Eis que, deixando de ler historinhas infantis, de repente descobri um sucedâneo, bem verdade que às avessas: a internet. Ela não me deslumbra como os contos de Grimm e Perrault. Pelo contrário, me aterroriza, mas tem alguma coisa de encantado. Toda vez que abro a caixa postal, é como se abrisse a torneirinha daquele palácio que a memória não esqueceu mas a vida demoliu.


Não recebo o guaraná mágico para matar minha sede e me tontear de prazer. Recebo mensagens propondo regimes de emagrecimento, macetes para aumentar o tamanho do pênis, oferecem-me terrenos que não quero comprar e viagens que não pretendo fazer. Vez ou outra, pinga uma gota de afeto -mal dá para encher o copo e embromar a sede.


Ouvi dizer que a internet está na idade da pedra, mais um pouco ela poderá dar-me mais e melhor. Um dia abrirei o computador e terei o guaraná que não mereço.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 12/1/2006