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Termômetro e febre

 

Costumo dizer que nada entendo de política. E acrescento: nada entendo de administração e de quase tudo neste mundo. Mas vejo com receio a substituição do ministro da Defesa, ainda no rescaldo da pequena, mas significante, crise com os militares na semana em que foram divulgadas as fotos de um dos torturados do regime de 1964.


Por ora, tudo continuará submerso, a solução do vice-presidente para administrar o setor foi inteligente e oportunista - no bom sentido. Mas não resolverá a questão, que é latente e bem mais funda do que o episódio das fotos e das diversas notas emitidas na ocasião.


Já lembrei, em crônica anterior, que, desde a Guerra do Paraguai, com a desmobilização em massa dos efetivos, ficou encravado na vida nacional esse sapo de macumba que volta e meia faz das suas, às vezes positivamente, como na Proclamação da República e na Revolução de 30, às vezes negativamente - e o maior exemplo é de conhecimento geral.


Há uma cena em "Os Maias", do Eça de Queiroz, em que Dâmaso Salcêde, um deslumbrado pelo prestígio social, é obrigado a escrever uma carta de retratação ditada por João da Ega dizendo-se bêbado contumaz e idiota de nascença. No caso de Dâmaso, não havia lugar para conseqüências, a não ser a da humilhação pessoal do próprio Dâmaso - ociosa por sinal, pois não precisava da carta para ser o consumado imbecil que era.


A carta ditada por Lula aos militares foi igual não no conteúdo, mas no ritual parecido. Teve o mérito de jogar água fria numa crise menor que se esboçava. O motivo do desconforto inicial foi superado, as fotos nem eram de quem se supunha inicialmente. Mas os conceitos gerais emitidos na primeira nota não esfriaram.


Pelo contrário: tiveram um motivo a mais para subir alguns graus no complicado termômetro que mede a nossa febre institucional.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 09/11/2004

Folha de São Paulo (São Paulo), 09/11/2004