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Um Natal em Amarante

 

Esta é uma história de meu avô, acontecida há mais de cem anos. Nordestino andante desses que viveu em muitos lugares, desde Valença, no Piauí, passando pelo Ingá do Bacamarte, na Paraíba, até acalmar-se no Maranhão, onde fez roças, enfrentou malárias e teve até um neto que foi presidente da República.


Passou um tempo de sua vida em Amarante, tradicional cidade do Piauí, plantada à beira do rio Parnaíba, que ali corre com suas águas preguiçosas, que mereceram do notável poeta Da Costa e Silva a imagem "de um velho monge, de barbas brancas alongando".


Não falo de Amarante de Portugal, cidade onde começa Trás dos Montes, nas montanhas de pedra entre o Minho e o Alto Douro, com registros arqueológicos como a Lapa do Beirão, Lugar do Castelo, as Meninas dos Castros, os Caminhos do Mouro, esses belos nomes que os portugueses vindos para o Brasil trouxeram no coração e na saudade.


Um destes subiu o rio Parnaíba e fundou a Vila do Amarante, que lá e cá tem a devoção de São Gonçalo, o mais popular dos santos portugueses, depois de Santo Antônio e São João, conhecido como São Gonçalo das Moças, santo folgazão, cantador e violeiro, casador das velhas e precursor do Viagra, pois protegia todos os que eram fracos para a carne. Até hoje, em Portugal, na sua devoção se puxa, pelo cordão da batina, a sua "relíquia", que tem poder mágico contra a gravidade.


Foi na Amarante piauiense que meu avô, comerciante, reuniu os quitandeiros para fazer um Natal de arromba, mandando buscar em Portugal vinhos Moscatel, Madeira M e R, barricas de vinho verde, bacalhau, castanhas, nozes, sardinhas, queijos, chouriços e maçãs. Fizeram a propaganda e organizaram -todo o comércio- um grande Natal. Com antecedência de meses pela longa viagem, a mercadoria desembarcaria em Parnaíba, perto de Luís Correia, numa lancha gaiola, e subiria o rio até Amarante.


Por artes do diabo a mercadoria não chegava, o rio secava e os pagamentos já estavam feitos. O Natal programado ameaçava fracassar e quebrar o comércio, pois, passadas as festas, as mercadorias ficariam encalhadas.


Que fazer para evitar a bancarrota? João Pereira deu a solução: pedir ao vigário que adiasse o Natal.


Foram ao pároco e expuseram o plano, o padre foi solidário... O Natal foi adiado e o menino Jesus só chegou a Amarante quando atracou com o vinho do Porto, o bacalhau e as guloseimas natalinas.


E assim, uma vez, o menino Jesus retardou sua chegada ao mundo e mataram o galo antes da missa.


Folha de S. Paulo, 25/12/2009

Folha de S. Paulo,, 25/12/2009