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ABL na mídia - O Globo - 'É preciso dar tempo ao passado', diz Milton Hatoum, que encerra trilogia sobre a ditadura e defende que intelectuais não se calem

 

No fim de “Dança de enganos”, novo romance de Milton Hatoum, destaca-se uma frase que, na opinião do autor, “dá uma manchete”: “É preciso dar tempo ao passado”. Mais que título de uma entrevista, essa frase talvez sirva de epígrafe à obra do escritor manauara, que, desde “Relato de um certo Oriente”, de 1989, elegeu a memória como tema de investigação. Derradeiro volume da trilogia “O lugar mais sombrio”, “Dança de enganos” é narrado por Lina, professora de francês que escreve sobre a própria vida na tentativa de entender por que se afastou do filho, Martim. “Quem proíbe o nosso encontro? Que demônio é esse?”, indaga o rapaz numa carta.

Os dois desencontraram ainda no primeiro livro da trilogia, “A noite da espera” (2017), quando Lina deixa o marido, Rodolfo, um engenheiro entusiasta da “revolução dos militares” (a história se passa na ditadura), para viver com um pintor. Martim se muda com o pai de São Paulo para Brasília, onde estuda arquitetura e se envolve com um grupo de teatro engajado e amador. No livro dois, “Pontos de fuga”, a repressão está no auge e Martim, de volta a São Paulo. Em “Dança de enganos”, ele já partiu para o exílio, deixando a mãe sem notícias. Lina, então, retorna ao passado, questiona as escolhas que a afastaram do filho, mas só entende o que de fato se passou quando cai em suas mãos um relato memorialístico do próprio Martim, numa passagem que oferece ao leitor uma nova compreensão do drama que move os três livros.

Hatoum convive com os personagens e enredos da trilogia há décadas. Em alguns pontos, a história revisita a juventude do escritor na ditadura. Tentou botá-la no papel no início dos anos 1980, mas desistiu. Era tudo muito recente. Só retomou o projeto neste século.

— É preciso dar tempo ao passado para fantasiar com conhecimento de causa, assim ele volta com mais força, não só como lembrança, mas como imaginação — explica o escritor de 73 anos numa conversa com o GLOBO em sua casa, em São Paulo. — Sem imaginação, não há personagem, não há conflito, tudo gira ao redor do umbigo. Como disse (o escritor russo) Tchekov, temos que sair de nós e inventar os outros.

Pano de fundo recorrente

Sétimo romance de Hatoum, “Dança de enganos” será lançado terça-feira (21), às 19h, na Livraria da Tarde, em São Paulo; uma semana depois, no dia 28, às 19h, no Centro Cultural Unimed, em Belo Horizonte; e em 8 de novembro, às 17h, na Livraria Travessa de Ipanema, no Rio. O autor também participa do Festival Literário Internacional de Itabira em 31 de outubro e 1º de novembro, e da Feira do Livro de Porto Alegre, em 9 de novembro.

A ditadura é um pano de fundo recorrente na obra do autor: está em “Dois irmãos” (2000) e “Cinzas do Norte” (2005). A diferença é que a trilogia “Um lugar mais sombrio” veio a lume num período em que o autoritarismo voltou a assombrar o país, o que acabou impactando a escrita dos livros. Alguns personagens soam atuais. “Na América Latina e no mundo todos esses monstros fascistas agonizam, mas não morrem. E o que é pior: voltam com força”, diz Justina, companheira de Damiano Acante, antigo professor de teatro de Martim.

Na obra de Hatoum, o autoritarismo não está encarnado apenas no Estado, mas se espalha por toda a sociedade e corrói as relações familiares. “A tirania familiar pode ser tão destruidora e nociva quanto a ferocidade do Estado”, diz a personagem Marcela em “Pontos de fuga”. Lina, a narradora de “Dança de enganos”, passa a vida resistindo a pequenos tiranos que tentam controlá-la, como a mãe e o ex-marido. Preso duas vezes na ditadura, Hatoum conta que sua oposição ao autoritarismo, dentro e fora de casa, começou cedo. Aos 15 anos, se mandou de Manaus para Brasília.

— Eu não ia aguentar, a província massacra. Ao mesmo tempo, no palco da província se encena um teatro que é visto por todos. Lá não dá para esconder tudo, as taras são expostas, o que é uma vantagem para quem quer escrever — diz ele.

O conflito familiar é um dos grandes temas do ciclo de romances amazônicos do escritor, encerrado com “Órfãos do Eldorado” (2008). Mas pode ser retomado.

— Tenho alguns contos inéditos ambientados em Manaus, que preciso reescrever, e ideias de romance. Penso em escrever minhas memórias, da infância até a mudança para Brasília. Quando lancei “Dois irmãos”, parte da minha família rompeu comigo. Se publicar as memórias, acho que a outra parte vai romper também — ri o escritor. — Se eu tiver tempo, energia e lucidez, ainda escrevo essas memórias. Como dizia (Stéphane) Mallarmé (poeta francês), uma coisa é ter uma ideia, outra é transformá-la em palavras.

As preocupações políticas e a defesa da integridade artística convivem na ficção de Hatoum. Seus livros são povoados de pintores, fotógrafos, escritores e atores, mas nenhum deles se dedica à arte engajada — talvez com exceção de Mundo, de “Cinzas do Norte”, que nem por isso rebaixa seu trabalho à pura propaganda. Em “Dança de enganos”, Martim é preso por distribuir panfletos a operários. Eram poemas.

— A arte é um dos maiores gestos de liberdade do ser humano. Por isso os autoritários inevitavelmente perseguem os artistas. Sempre fui apaixonado por arte, é o mundo que eu conheço. Fiz revistas, fui cantor quando era jovem, tentei ser pintor, entrei na faculdade de arquitetura porque me achava artista. E acabei na literatura — conta Hatoum. —Não condeno a arte engajada, de denúncia, mas prefiro a ambiguidade e admiro artistas que se esforçam pelo estilo.

A recusa à instrumentalização política da arte não o impede de levantar (fora dos livros) bandeiras como a democracia, a educação e a solidariedade à causa palestina. Aliás, foi com o escritor palestino Edward Said (1935-2003) que ele aprendeu o que é ser um intelectual público.

— Um intelectual, de qualquer profissão ou mesmo sem profissão, deve ser um humanista que não se deixa calar por ideologias, partidos ou religiões, e usa sua voz em defesa da justiça social e da liberdade — afirma. — Por isso me assusta que supostos intelectuais falem do ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 e, por má-fé ou falta de conhecimento, ignorem a história da ocupação sionista da Palestina. Quem só se cala a respeito de certas injustiças é covarde e hipócrita. Você acha que se os palestinos destruíssem Tel Aviv e matassem milhares de mulheres e crianças eu ia ficar calado? Com certeza, não. Grandes historiadores judeus do Holocausto afirmam que o que acontece em Gaza é um genocídio. Por que, então, um modesto escritor como eu não poderia dizer isso?

'O fardão me assombra'

O papel de Hatoum como intelectual público deve se acentuar ainda mais a partir do ano que vem, quando ele toma posse na Academia Brasileira de Letras. A cerimônia está prevista para março, mas ele tem esperança que seja adiada em alguns meses: ele ainda nem encomendou o fardão.

— O fardão me assombra (risos). Rituais me incomodam um pouco, sabe? — desabafa. — Estou otimista que a posse vai ser em maio, junho. Agosto, quem sabe... A ABL oferece um plano de saúde muito digno, o que no momento eu não tenho, mas nem por isso é preciso ter pressa. Adiando eu ganho mais tempo para elaborar um bom discurso.

Hatoum solta uma gargalhada quando o repórter pergunta se ele acordou cedo no último dia 9, quando a Academia Sueca anunciou o Nobel de Literatura. Ele acordou cedo sim, mas por hábito mesmo, não na esperança de receber uma ligação de Estocolmo. O nome do brasileiro chegou a aparecer nas listas da casas de apostas londrinas para ganhar o prêmio, que acabou nas mãos do húngaro László Krasznahorkai.

— Não alimentei nenhuma ilusão, nem sei como meu nome foi para lá — diz Hatoum. — Tudo o que eu quero é escrever meu próximo romance e meus continhos.

A protagonista desse próximo romance já deu as caras na trilogia, aliás: é Évelyne, franco-brasileira que distribuía poesia a operários junto com Martim. Da prisão, Évelyne vai contar sua história de amor com um cubano chamado Jaime (que também já apareceu). Martim e outros personagens da trilogia também devem surgir aqui e ali, mas o romance não faz parte da série, explica o autor. O novo projeto o levou a mergulhar na literatura cubana e a reler duas novelas do escritor britânico-polonês Joseph Conrad (1857-1924), as quais ele gostaria de traduzir. Ler é a principal ocupação do escritor.

— Sempre foi assim. Até porque não me interessa publicar muitos livros. Acho que já está quase bom, que já estou chegando ao limite — diz ele, para o assombro de quem ouve. — É verdade!

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/10/18/e-preciso-dar-tempo-ao-passado-diz-milton-hatoum-que-encerra-trilogia-sobre-a-ditadura-e-defende-que-intelectuais-nao-se-calem.ghtml

22/10/2025