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ABL na mídia - O Globo - Efeito de cor: Ana Maria Gonçalves reescreve a história na Academia Brasileira de Letras

 

Existe um tipo de orgulho que colore o corpo inteiro. Um quentinho no coração, um efeito de cor na alma que não sai na água, porque não vem da maquiagem, vem da história, vem da possibilidade de ver alguém que representa tanto para o nosso país chegando onde merece estar. Foi exatamente isso que senti ao ver Ana Maria Gonçalves tomar posse na Academia Brasileira de Letras. E que letras!

Letras que finalmente se abrem para uma escritora que entende que o português não é um só, mas muitos. Que para ser brasileiro é preciso, antes de tudo, ser poliglota na própria língua, parafraseando Evanildo Bechara, citado no discurso de posse da cadeira 33, na ABL, feito por Ana Maria.

Afinal, em nossa língua portuguesa cabem Angola, Bahia, Maranhão, Guiné, quilombos, senzalas, aldeias, becos, terreiros, marés e memórias que, por vezes, uma “elite” brasileira tentou e tenta esquecer ou subestimar, mas que ela fez questão de lembrar.

Ana Maria, com seu mergulho profundo no pretuguês, língua que nasce da mistura forçada, mas também da reinvenção potente, nos presenteou com “Um defeito de cor”. Um livro que só existe porque a autora encarou seis anos de pesquisa, escuta e coragem para entregar uma obra que transborda verdade e reflexões profundas.

O “defeito” é ressignificado em efeito: é a marca linguística, cultural e corporal deixada pela escravidão, que, por muito tempo, associava a cor da pele ao erro, à falha, a algo a ser corrigido. Ana vira a mesa e mostra que o defeito está no sistema não na cor.

A trajetória de Kehinde, que vira Luísa Mahin, e mais tarde cruza o destino de Luiz Gama, não é só literatura: é memória viva. Ana nos lembra da mulher que talvez tenha existido, talvez não, mas que poderia ter existido, que deveria ter existido. Uma mulher estrategista, articuladora política, que hackeou o século XIX com inteligência, risco e amor.

Ao seguir Mahin, Ana nos mostra que plantar sementes é um ato radical, mesmo quando, assim como Mahin e Gama, não vemos todas florescerem. Ainda assim, plantamos. E seguimos.

No discurso de posse, a escritora não passou pano para a História. Ao contrário: lembrou que a Academia proibiu e retaliou mulheres por décadas. Lembrou que a porta da casa de Machado de Assis era estreita demais para quem não se encaixava na fantasia do gênio branco, masculino e letrado.

A ABL, assim como o mercado de trabalho, nunca foi só sobre mérito. É sobre relações visíveis e invisíveis que costuram oportunidades, que elegem quem é digno de chegar e quem deve ficar do lado de fora. Critérios raciais e de gênero moldaram (e ainda moldam) esses acessos, sem que ninguém, muitas vezes, os nomeie, mas com todos sentindo os efeitos. A chegada de Ana Maria prova uma coisa simples: mesmo os sistemas mais duros têm brechas e alianças possíveis. Por elas que seguimos entrando, com respeito e firmeza necessária para abrir caminhos onde disseram que não havia diálogo.

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/ela/luana-genot/coluna/2025/11/efeito-de-cor-ana-maria-goncalves-reescreve-a-historia-na-academia-brasileira-de-letras.ghtml

19/11/2025