No dia 7 de novembro, a tradicionalíssima Academia Brasileira de Letras (ABL) viverá um dia histórico: a escritora mineira Ana Maria Gonçalves, de 55 anos, se tornará a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira de imortal na instituição. Para além do simbolismo, sua consagração ilumina uma autora de credenciais notáveis. Ana Maria já tinha 30 anos quando decidiu trocar a carreira de publicitária pelas letras. A reinvenção fez bem à literatura nacional: com seu segundo romance, Um Defeito de Cor, publicado em 2006 pela editora Record, ela expôs a visão de mundo dos negros brasileiros de forma vigorosa, ao narrar uma história inspirada na vida de Luísa Mahin, uma das figuras centrais da Revolta dos Malês (1835) e mãe do advogado Luiz Gama, um dos patronos da Abolição. Com sua projeção na ABL, o livro vem ganhando merecido resgate nas listas de best-sellers. Nesta entrevista, a autora reflete sobre os avanços da afirmação negra no país, a chaga persistente do racismo e a luta por representatividade na literatura, cinema e TV.
A senhora será a primeira mulher negra na história a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL) em quase 130 anos de existência da instituição. Qual o significado da conquista? É importante relembrar a Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), autora que ajudou a fundar a ABL, participando de todas as discussões sobre a Academia, mas que, na hora de escolher quem tomaria posse das cadeiras, teve seu espaço negado. Homens decidiram que ficaria entre eles, e a proibiram de assumir a cadeira número 3. Puseram no lugar o marido dela, um poeta português irrelevante, sendo que Júlia era uma das grandes escritoras de seu tempo. Em 1977, entrou a Rachel de Queiroz, a primeira mulher, e hoje eu sou só a 13ª. Quando eu tomar posse, seremos seis mulheres em um grupo de quarenta acadêmicos — o que é pouco ainda. Mas acho que eu ter sido eleita é um aceno da Academia a se enxergar, a entender o que falta lá dentro. Porque ainda não é um quadro que espelha a cultura e a sociedade brasileiras.
Seu principal livro, Um Defeito de Cor (2006), narra a história de uma mulher negra escravizada no Brasil do século XVIII que retorna à África em busca do filho — obra que voltou com tudo à lista de Mais Vendidos de VEJA, na esteira de sua eleição à ABL. Nessas quase duas décadas desde a publicação, o Brasil conseguiu avançar na questão racial? Acredito que sim, porque agora pelo menos conseguimos falar em público sobre essas pautas, seja para o bem, seja para o mal. Pois por muito tempo essa pauta foi proibida, principalmente na ditadura militar brasileira, que queria consolidar a ideia de democracia racial. Por muito tempo, a sociedade nacional silenciou sobre esse assunto. Nos anos 2000, época em que comecei a escrever o livro, houve um avanço na discussão sobre cotas graças a um longo trabalho dos movimentos negros de reivindicar direitos, debatendo o assunto dentro das universidades e, mais para a frente, em órgãos públicos. Era algo que estava sendo há muito tempo conversado, mas que não encontrava um eco na sociedade. E a discussão sobre cotas rompeu essa barreira.
“Eu ter sido eleita é um aceno da Academia a se enxergar e a entender que seu quadro de escritores imortais ainda não espelha a cultura e a sociedade brasileiras”
O avanço, então, é satisfatório? Em termos. Por muito tempo, as pessoas ignoraram a desigualdade racial do país. Estamos falando de mais de três séculos que demonstraram quão eficaz é a prática racista em sociedades que foram tocadas pela escravidão. Vejo progresso em algumas áreas, mas creio que ainda temos muito a avançar. Contudo, só o fato de podermos conversar e termos muita gente disposta a ouvir e a mudar de opinião a partir de dados e fatos, já é um grande avanço para a sociedade brasileira.
A militância atual denuncia um apagamento de heróis negros como Luiz Gama na história. Por que é importante resgatá-los? Várias gerações anteriores perderam a oportunidade de se identificar com seus próprios heróis, com seu povo. É curioso que eu me lembro de ter estudado na escola sobre a Guerra do Peloponeso, da Grécia Antiga, mas não lembro de ter lido sobre Zumbi dos Palmares. Ou seja, foi um projeto de escolha pedagógica, principalmente no período ditatorial, de apagar a nossa história ao não falar sobre o período da escravidão. Por causa disso, muitos desses heróis e heroínas que foram extremamente importantes nos levantes pela Abolição acabaram apagados. É daí que surgiu o termo “pacto da branquitude”, cunhado pela psicóloga e ativista Cida Bento: para a elite, quanto menos se falar do tema, melhor. E isso se perpetuava no fato de que a maioria dos livros didáticos e de história geralmente era escrita por pessoas brancas.
Outra polêmica diz respeito ao suposto embranquecimento de Machado de Assis ao longo da história nacional. Concorda com a tese? Sim, houve essa tentativa baseada na crença de que haveria uma impossibilidade de ver a grande figura intelectual que o Machado de Assis foi como um homem negro. Muitos querem defender que o próprio nunca falou “pelos negros”, mas existe um trabalho importante do professor Eduardo de Assis Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que resgata escritos do Machado e aponta como ele na verdade falava de negritude e criticava o racismo nas entrelinhas de suas obras.
Qual é o impacto desse esquecimento na história do país? Nós, negros, não éramos tidos como pessoas, éramos apenas serventes, objetos. Tanto que podíamos ser deixados como bens em testamento, do mesmo jeito que móveis, gados e propriedades. Não se escreve a história de quem não tem a sua humanidade reconhecida. Durante muito tempo, não fomos nem considerados dignos de sermos historiografados. Quando acabou o período da escravidão, tudo o que se queria era apagar esse capítulo da história do Brasil. Ruy Barbosa (1849-1923) até mandou queimar os documentos que provavam a posse de escravizados, porque os senhores de escravos queriam entrar na Justiça para pedir indenização do governo brasileiro por ter abolido a escravidão.
Nos últimos anos, a literatura brasileira tem aberto espaço para a diversidade de vozes. Na sua opinião, o que ainda precisa ser feito para atingirmos uma equidade plena? Precisamos de mais gente ocupando os espaços. Durante muito tempo, fomos deixados à margem do mercado editorial brasileiro, que continua sendo um dos mais elitistas do mundo. Se você pegar uma produção de quinze, vinte anos atrás, quem publicava livros eram, em maioria esmagadora, os homens brancos do Sudeste. Era como se todo o restante não existisse. Porque o mercado literário trabalha muito com indicação. Não é que as editoras barravam negros, mulheres e indígenas, mas essas minorias não ocupavam espaços e, portanto, não eram indicadas. Começamos a furar essa bolha, mas com muito atraso.
É inegável que cresceu a presença de negros em novelas da Globo atualmente, bem como nas séries produzidas no streaming. Acha que a reparação histórica atingiu bons resultados na TV? Ainda não. Com certeza temos um começo, mas as produções ainda são extremamente brancas, com roteiristas, diretores e produtores brancos. Começaram a colocar personagens negros nas tramas, seja em teatro, cinema, TV etc. Mas sempre faltaram pessoas negras nos lugares de tomada de decisão. Tempos atrás até havia uma boa vontade, mas saiu muita coisa horrível por aí também.
Pode dar exemplos? Começaram a falar da gente sem a gente. Em 2014, o Miguel Falabella lançou uma série que tinha um título horrível, se chamava Sexo e as Negas. Tenho certeza de que ele não escreveu com a intenção de ser um título racista, mas, se talvez ele tivesse um negro por perto para avisar, talvez não tivesse passado. Na novela Viver a Vida (2009), colocaram a personagem da Taís Araujo para ficar ajoelhada na frente de uma mulher branca e tomar um tapa em plena Semana da Consciência Negra. Se tivessem consultado algum negro, talvez entendessem que era melhor esperar outra semana. Está na hora das produções terem também roteiristas e diretores negros.
“Durante muito tempo, fomos deixados à margem do mercado editorial. Quinze anos atrás, quem publicava livros eram, em maioria esmagadora, os homens brancos do Sudeste”
Na literatura, muitos autores negros estão em evidência hoje, como Conceição Evaristo, Jeferson Tenório, Itamar Vieira Junior. Acredita que as obras deles têm pontos de contato com a sua? Sim, o que nos move a estudar e a escrever é a nossa existência, nossa vivência como pessoas negras numa sociedade racista moldada pela escravidão. Nós escrevemos livros de gêneros diferentes, nos interessamos por histórias diversas, com pontos de vista divergentes e que falam de regiões geográficas distintas. O Jeferson fala da realidade do Rio Grande do Sul, o Itamar vem da Bahia, eu e Conceição, de Minas Gerais. Mas todos nós contamos histórias sobre nosso povo que nunca foram contadas.
Há poucos anos, suas críticas aos elementos de teor racista nos livros de Monteiro Lobato provocaram grande repercussão no Brasil. Acredita que é preciso revisar os clássicos para adaptá-los ao politicamente correto ou certas obras devem permanecer intocadas? Em 1926, Monteiro Lobato publicou um livro chamado O Choque das Raças ou o Presidente Negro, um romance no qual ele fala da invenção de uma máquina que esteriliza e acaba com a raça negra. Esse livro foi publicado no Brasil, ele queria publicá-lo também nos Estados Unidos, mas até para os americanos daquela época era muito pesado e ninguém quis. Não acho que tenha a ver com politicamente correto apontar o uso nefasto que ele faz desses temas na literatura dele. Eu, particularmente, sou a favor de manter a escrita, mas inserir notas de rodapé para apontar e discutir o racismo dentro dessas obras.
Em seu retorno à Presidência americana, aliás, Donald Trump colocou em sua mira as políticas de diversidade e programas voltados para a afirmação racial. Como enxerga essa guinada? É um movimento de reação a algumas vitórias nossas, geralmente vindo de pessoas privilegiadas. As críticas às cotas raciais nas universidades, por exemplo, são no tom de que “estão tirando as vagas de não sei quem”, sendo que não estamos tomando o lugar de ninguém. Mas o fato de pessoas vistas como “inferiores” ocuparem espaços incomodou gente como o Trump. O que está acontecendo hoje no mundo é um movimento de reação aos direitos que nós conquistamos nas últimas décadas. Mas não podemos recuar. Porque são direitos ainda fragilizados.
Matéria na íntegra: https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/nao-podemos-recuar-diz-ana-maria-goncalves-primeira-negra-eleita-para-a-abl/
09/09/2025