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O imortal que queria ser santo

 

Mariana Filgueiras

À frente das comissões para celebrar Machado de Assis e a chegada da família real, Alberto da Costa e Silva lança livro de memórias, escreve outros dois e confessa: gosta mesmo é de ser poeta

Antes de ser poeta, escritor, ensaísta, historiador, embaixador e imortal, Alberto da Costa e Silva queria ser santo. Menino, da geração anterior àquela que quis mudar o mundo nos anos 60, contentava-se em mudar a si mesmo. Que inveja de Cristo crucificado... Mas a vida encarregou-se de mostrar que, se com fé seria difícil, sem ela, impossível. E o menino, que sentia o sol com as pálpebras, desistiu da santidade. Foram tempos de ir à escola de paletó e gravata, atravessar a Avenida Central no estribo de bonde, Em busca do tempo perdido de Proust embaixo do braço, época que determinou a formação de um personagem decisivo para a cultura brasileira. Aos 15 anos, publicou o primeiro artigo, neste Jornal do Brasil. A mãe, Creusa, não deu muita atenção. No fundo, já sabia que o futuro do rebento não dependeria de milagres.

Desde então, acumulou histórias. Percorreu o mundo na carreira diplomática, fixando raízes e coração especialmente na África. Lia tudo o que lhe caía nas mãos sobre o continente. É hoje o maior africanólogo entre os países de língua portuguesa. Fez cinco filhos, sete netos. Que lhe dão vontade de escrever ainda mais. Dessa ânsia, toma fôlego para escrever todos os dias, pela manhã, em um computador não conectado à internet, por medo de que suma tudo no mundo virtual.

Atualmente, escreve o terceiro volume de uma série sobre a história da África, um outro intitulado A África explicada a meus filhos, mais didático, além de artigos para a revista da Biblioteca Nacional e a própria biografia, que está lançando em volumes. O primeiro, Espelho do príncipe, tratava da infância. O segundo acaba de sair pela Nova Fronteira, Invenção do desenho: ficções de memória, que compreende o intervalo de 1945 a 1961, entre a escola e o início da carreira diplomática. Mas Alberto não escreveria uma biografia comum, linear e cronológica. Escolheu uma forma inusitada para dar vazão à vida: a obra é dividida em pequenos capítulos, episódios corriqueiros que se lançam como flashes espocados.
Aos 76 anos, apesar de aposentado, trabalha como nunca: preside a comissão da prefeitura que cuida do bicentenário da chegada da família real (um calendário de festejos para celebrar a transformação do Rio em capital do império); a comissão da Academia Brasileira de Letras para o centenário de morte de Machado de Assis; orienta a reedição das obras completas de Jorge Amado pela Companhia das Letras e ainda dá aulas magnas em seminários e universidades. Na sala de casa, em Laranjeiras, entre livros e totens africanos, Alberto da Costa e Silva falou ao Idéias: "O que sou mesmo, disso tudo, é poeta". A entrevista completa está na página 3.

Trecho de 'Invenção do desenho'

Combinei com o Antônio Carlos Villaça: no sábado, íamos entrevistar Manuel Bandeira. E fomos, os dois, mais o fotógrafo Aldir Vieira. O poeta morava num pequeno apartamento na Avenida Beira-Mar. Saguãozinho, sala, um ou dois quartos e cozinha. Os livros bem cuidados e dispostos com alinho nas estantes. O retrato por Portinari - ou seriam dois retratos? - e, numa das paredes, as pequenas bandeiras do Brasil e do Chile a se cruzarem. O desenho a lápis, fizera-o Pablo Neruda.

Bandeira recebeu-nos, sorridente, de pijama e chinelos: acabara de levantar-se de sua sesta de tísico. E começou a brincar de nos levar a sério. Respondeu a todas as nossas perguntas. Deixou-se fotografar conosco. Escreveu, para o Villaça, Renúncia, e para mim, Desencanto. E leu em voz alta, pausada e quase rouca, o que pusera no papel, sem disfarçar a emoção com que nos disse - e senti que era a mim, e a mim somente, que o dizia: "Eu faço versos como quem morre...".
Foi coar café para nós. E mostrou-nos livros. E falou-nos de poetas de sua predileção. Estava de pijama. Não fazia cerimônia conosco, dois rapazolas. Mas havia uma certa manha na forma como mantinha a conversa e, por trás das lentes, nos olhava. Como se quisesse mostrar que cada minuto de nossa visita o fazia feliz.

"Só escrevo quando não posso mais evitar"

O senhor preside a comissão que vai organizar as homenagens do centenário de morte de Machado de Assis, do bicentenário da chegada da família real, orienta a reedição das obras completas de Jorge Amado, lança um livro de memória e escreve outros dois. Como o senhor lida com tanto trabalho?

Estão me matando e você quer comemorar, né? É bom ter tarefas. Quanto mais temos os dias ocupados, mais tempo temos, menos nos dispersamos. O calendário para a comemoração da chegada da família real já está planejado, estamos na fase de execução. Para o ano Machado de Assis, já elaboramos o programa, mas estamos aguardando a aprovação definitiva para dar início. A Lilian Moritz e o Luíz Schwarcz, da Companhia das Letras, me perguntaram se eu estava disposto a ajudá-los nesse projeto de fazer uma nova edição da obra de Jorge Amado, com com texto mais cuidado, amparada por estudos críticos. Mas uma edição que não tivesse apenas textos críticos literários, mas que situasse a obra de Jorge Amado no contexto antropológico e sociológico.

E ainda tem os seus livros...

Eu estou aqui escrevendo meus livrinhos. Hoje estou preparando um livrinho para a Ediouro, A África explicada a meus filhos. Mas vou explicar aos filhos dos meus filhos, porque meus filhos já estão muito grandes. Trabalho todo dia de manhã de forma sistemática: acordo às 7h e começo a escrever depois do café da manhã, e vou até o meio-dia. Nunca soube trabalhar à noite. Este Invenção do desenho é o segundo, tem o primeiro, Espelho do príncipe, que são as memórias de minha infância. Estes livros vou escrevendo devagarinho, à medida que as lembranças me vão ocorrendo. A memória é curiosa. Você soma, subtrai, confunde, faz um jogo muito curioso, semelhante ao que o ficcionista passa no processo de invenção. Só que as histórias não são inventadas. São historias vividas. Mas, em muitos momentos, existe alguma coisa de invenção. A nossa saudade embeleza ou amarga determinados episódios. Com o passar do tempo, eles são depurados, transformam-se.

O livro é como se o senhor estivesse contando sua vida numa festa de Natal, num jantar...

Exatamente, são flashes. Evidentemente há coisas que não conto. Não conto porque não tem interesse para outras pessoas. Eu me vejo como personagem, não como autor. O livro tem um certo sabor de romance. Quando escrevi o primeiro, Espelho do príncipe, estava mais interessado nas outras pessoas do que em mim mesmo. É o espetáculo do mundo que me interessa. É o convívio dos outros que me importa. Houve um livro de memórias que marcou muito a minha geração: À la recherche du temps perdu(Em busca do tempo perdido), que nós lemos e relemos e treslemos. Li Proust desde os meus 16 anos. Esta visão de que o que importa no mundo, como minha avó dizia, são os outros. São os outros que nos faltam, os outros que nos formam.

Como o senhor provoca a sua memória?

Uma lembrança arrasta a outra. Você escava a sua memória. E vai tecendo, e só consegue se lembrar de dois terços dos nomes das pessoas. De repente passam-se dois anos e vem aquilo que você queria lembrar. As engrenagens da sua memória fazem com que apareçam umas coisas que nem têm a ver com aquilo que está escrevendo, uma cor verde, uma blusa verde, um cheiro, um rosto, um jogo de sombra e luz... A gente escreve memória para deixar um depoimento. No meu caso, um depoimento do meu tempo. Acho que sou o primeiro da minha geração a fazer isso. A minha visão é diferente do Gilberto Amado, Pedro Nava ou Afonso Arinos de Mello Franco. Eu fui criança na guerra, no Nordeste. A Segunda Guerra esteve mais presente no Nordeste do que no Sul. Nós tínhamos blecautes, as sirenes tocavam, apagavam-se as luzes da cidade... A guerra nos marcou muito. De modo que quando a guerra acabou, tínhamos a esperança de que tivesse, de fato, acabado. Foram expectativas que não se cumpriram, malogros, as perplexidades com que nós ficamos diante do mundo.

Como a criança na guerra sentia o mundo?

Eu vivia entre amigos que tínhamos ambições muito altas... nós queríamos ser santos. Eu queria ser santo. Nós não queríamos mudar o mundo, mas nós mesmos. Acreditávamos na perfeição do ser humano. Depois a gente vai se desiludindo disso, a gente começa a aprender que o ser humano é imperfeito... E isto não se faz sem um preço... que neste caso, é o enfraquecer do sonho.

Como o senhor perdeu a sua fé religiosa?

Fé é uma coisa muito complicada. Ou se tem ou não se tem. Eu perdi a minha muito cedo. Dez, 11 anos. Não teve episódio nenhum, não (resiste). A minha família era muito religiosa, tenho tio e primos padres. Mas eu sempre tive grande respeito e fascínio pelo sagrado. Você vai notar isso em meus livros. Eu sempre considerei muito meus amigos católicos. E os autores católicos também. Autores que sempre tiveram nostalgia da santidade, e mais do que isso, uma espécie de inveja da santidade.

Um livro de memórias é um livro de história?

São duas coisas muito próximas. O que a história faz? A história quer preservar a memória coletiva. Se você pensar bem, um livro de memórias como este é um livro de história. Deste tempo e do outro. Eu conto o que foi viver , um rapazola, no Rio de Janeiro e depois em Campos do Jordão, e mais tarde em Lisboa, Estados Unidos, Europa, África, entre os anos de 1945 e 1961. Como era viver neste período? Se nós estivéssemos em 1948, este rapaz não estaria tirando fotografias em mangas de camisa (aponta para o fotógrafo), mas de terno e gravata. É preciso deixar o registro desta época.

Como nasceu a sua paixão pela África?

Comecei a me preocupar com a África aos 16 anos. Um dos meus professores me pôs nas mãos Casa grande & senzala. O impacto deste livro nos anos 30, 40, foi muito grande. Tudo aquilo era novidade. O que mais me marcou foi Gilberto Freyre ter colocado o negro no centro da nossa história. E meus professores me orientaram a ler Os africanos no Brasil, de Manoel Quirino, e comecei a procurar o que houvesse sobre a África, e não havia nada. Quase nada. Quando entrei para o Itamaraty, fui trabalhar na divisão comercial, e e me ocupar com assuntos referentes à África, Ásia e Oceania. E foi o período áureo da descolonização. E fui procurando o que as embaixadas de Washington, Paris, diziam sobre os novos países da África. Quando fui removido para Lisboa, o meu chefe, embaixador Negrão de Lima, me deu a África para cuidar. E foi quando eu comecei a viajar pela África. Comecei a confrontar o que eu havia lido com o que eu estava vendo. O que era fascínio primeiro se transformou em paixão, e eu ando nisso até hoje.

Por que a África guarda tantos lugares comuns no imaginário das pessoas?

Porque a África foi construída no século 19 como um lugar de mistério, onde era possível toda sorte de aventuras. Todos nós lemos Tarzan, As minas do rei Salomão, Joseph Conrad, quer dizer, a visão do século 19 era realmente a de um continente estranho. Só não era estranho e desconhecido para seus próprios habitantes. Na última revista da Biblioteca Nacional fiz um artigo sobre a visão clara que teve José Bonifácio dos negros conversando com os escravos da sala. E o europeu não procurava conhecer a África a partir dos africanos, e criaram uma mitologia da qual estamos abastecidos até hoje. Depois que a África ficou independente, os problemas que a África começou a ter também encheram as páginas dos jornais, de guerras, fome. Mas estes são fatos localizados na África. As crianças lá vão à escola, as pessoas lavram sua terra, mas só nos chega o trágico, o sensacional. Mas a África é fascinante. Chamei até um livro meu de O vício da África. quem vive lá se apega. Algumas partes da África têm uma coisa que falta ao resto do mundo: sabor. A força de algumas dessas culturas é tão grande que não se destruiu com a força da TV, da internet, da fome, da guerra.

Ainda há muito a se dizer sobre a África? Como vão os seus estudos?

Eu escrevi A enxada e a lança, sobre a África antes dos portugueses, até 1500, e escrevi A manilha e o libambo, que é a história da África de 1500 a 1700. Já estou no terceiro capítulo do resto da história da África, de 1700 a 1900. Mas parei para escrever este livro didático, para que a pessoa possa ler em um fim de semana e aprender o essencial sobre a África. Ao fim deste terceiro volume, eu já terei escrito 4 mil páginas sobre a África, acho que posso morrer em paz.

O senhor ainda escreve poesia?

Eu sempre escrevi pouca poesia. Três a quatro poemas por dia. Eu fugia, a poesia é uma espécie de maldição. As pessoas que escrevem profusamente... não sei não. Eu não faço muito esforço: é só quando eu não posso mais deixar de escrever que eu escrevo. Você tem de resguardar na sua alma um espaço de pureza. Que seja incontaminável. Que você não ponha nenhum dedo sujo. Este é o espaço da poesia. É isto que eu tenho de sagrado, que eu mantenho do rapazola que queria ser São João da Cruz.

Jornal do Brasil (RJ) 6/10/2007

10/10/2007 - Atualizada em 09/10/2007