Boa noite.
Nós temos o mesmo amor. Todas as pessoas que pertencem a esta Casa e as que estiveram antes nas 40 cadeiras. As que estão nesta cerimônia e numerosas brasileiras e brasileiros. É um amor que não quer o objeto amado só para si. Prefere o oposto, seduzir mais e mais pessoas para a mesma paixão, compartilhar, ampliar, difundir. Cada pessoa, usando ou não o fardão nessa noite da minha alegria, tem o mesmo caso de amor com o livro.
Nós nos reconhecemos como parte da mesma irmandade, trocamos histórias, falamos da última descoberta, lembramos com carinho da primeira vez. Contamos sobre os velhos prazeres com obras que estão nas nossas estantes. Nada nos sacia, porque há outros a conhecer. E tantos ainda sendo escritos.
O livro é o centro da Casa de Machado de Assis. E é o centro das nossas vidas. Nosso amor da vida inteira. Isso nos une. Para sempre.
Hoje, na cidade do Rio de Janeiro, na capital mundial do livro de 2025, eu, Miriam Leitão, me sinto em glória — a glória que fica, ensinou Machado — porque as senhoras acadêmicas e os senhores acadêmicos disseram sim quando eu bati à porta desta Casa, que há cento e vinte e oito anos defende e protege o livro e a língua portuguesa. Eu agradeço a generosidade, a acolhida, os conselhos. Especialmente agradeço a quem me mostrou que eu sonhava o que eu nem sabia que sonhava.
Academia Brasileira de Letras! Como é forte e vigorosa essa instituição. Eu tive noção mais precisa da dimensão da ABL ao ser eleita. Os abraços que recebi, as palavras carinhosas, não vieram apenas dos amigos, colegas e parentes. Vieram de desconhecidos, pessoas nas ruas, o atendente da companhia aérea, a moça do caixa da lanchonete, a criança que leu um livro meu, o motorista do táxi, o entregador da correspondência. Nos abraços e palavras que recolhi eu vi o afeto que cerca a Casa de Machado de Assis. Ao lado da alegria de pertencer, cresceu em mim também o senso da responsabilidade. É uma honra estar aqui. Sei que há deveres aos quais eu me dedicarei nos próximos anos da minha vida, nesta instituição, que está em momento tão interessante e desafiador. Ao mesmo tempo em que preserva seu legado institucional, ela se renova.
Merecer os que vieram antes de nós é sobretudo procurar cada vez mais fazer dela um centro plural do pensamento brasileiro, no qual esse país diverso, negro, branco, indígena, multilíngue, construído por homens e mulheres das mais diversas origens e de todas as regiões se veja, se reconheça. Somos as guardiãs e os guardiões de uma história, mas reconhecemos também que nova história vem sendo escrita a cada dia por pessoas de todos os recantos e origens. E o nome da nova ordem é inclusão.
Da exclusão de mulheres, das pessoas negras, dos povos indígenas, tem sido feito o pior lado do Brasil, o mais doloroso, atrasado e perverso. Este é exatamente o momento em que se quebram barreiras, tetos de vidro, muros artificiais. Momento decisivo da História em que temos a chance, o privilégio e o dever de moldar a face do futuro. E ela só será brasileira se for como somos realmente. O povo dos muitos povos.
Instituições, espaços de poder e de prestígio precisam lançar sobre si um olhar crítico e perceber a hegemonia de um gênero, e de uma cor. O poder é branco e masculino. É obra do nosso tempo ver os talentos que habitam outros corpos. A vitoriosa campanha das cotas raciais nas universidades públicas abriu novos horizontes para o Brasil, o que me deixa esperançosa. O Brasil começa a mudar. A entrada da primeira escritora negra na Academia é uma alegria. Bem vinda Ana Maria Gonçalves, seu sonho é o meu sonho, o de que você não seja a única.
O grande cineasta e pensador, Carlos Diegues definiu como “gloriosa" a Cadeira 7. Difícil achar outra palavra para uma cadeira com tantos talentos. A natureza da cadeira 7 ficou marcada na escolha de seu patrono, o poeta Antonio Frederico de Castro Alves. O jovem de “vida breve e ardente” como o definiu Afrânio Peixoto. O defensor dos escravizados. Esta é uma cadeira pública, de intelectuais públicos, ela tem que estar de olhos postos no Brasil. Esse é o recado da História.
A cadeira 7 é a que teve mais ocupantes entre as 40. Tenho dez antecessores. Quem escolheu Castro Alves como patrono foi o jornalista, poeta, romancista e polemista Valentim Magalhães. Depois veio ninguém menos que Euclides da Cunha, o autor de Os Sertões, o livro que atravessa gerações trazendo um relato trágico e épico de um evento da história do Brasil que ilumina tantas outras tragédias sociais. Afrânio Peixoto o sucedeu, e em seus romances viveu o próprio caminho do Brasil, entre o sertão e a cidade. Veio de Minas o quarto ocupante da cadeira, o discreto Afonso Pena Junior. Depois dele, o grande jurista Hermes Lima, o homem que enfrentou duas vezes o autoritarismo. É de novo da Ciência Jurídica o luminar que vem em seguida: Francisco Pontes de Miranda, o parecerista mais citado em todos os tribunais. A criativa romancista Dinah Silveira de Queiroz é a sétima ocupante da cadeira 7 e assumiu num dia 7 de abril, meu aniversário e dia do jornalista. Por sortilégio dos números, eu fico imaginando que ela me acenou, através do tempo, ao escolher a data da posse.
Dinah é sucedida pelo embaixador Sérgio Corrêa da Costa. Em seguida, é eleito o grande cineasta Nelson Pereira dos Santos, pedra fundamental desse fenômeno cultural brasileiro que é o Cinema Novo. O movimento tem entre os seus mais brilhantes protagonistas, Carlos Diegues, meu antecessor imediato, a quem rendo e renderei homenagens neste discurso e na vida. E o farei não por dever do ritual de posse, mas porque Cacá Diegues foi brilhante, fez um cinema autoral, que teve sempre em seu centro o país que todos amamos.
Eu quis perfilá-los de uma só vez, para depois me deter melhor sobre eles e ela, porque queria que todos tivessem a noção da grandeza desta cadeira. Ela tem notáveis ocupantes. O que torna minha tarefa bem difícil nesta noite. As pessoas que vieram antes de mim não podem ser apenas mencionadas. A corrente da qual eu sou agora um elo, tem como natureza a diversidade de estados brasileiros, de áreas de pensamento e de ação. Há algo em comum que os unifica. Como jornalistas, romancistas, juristas ou cineastas são todos pensadores do Brasil. O Brasil foi a maior devoção de cada pessoa que aqui esteve.
Houve um momento, quando estudava os ocupantes da Cadeira 7, em que eu fiquei assombrada com tantas e tão versáteis inteligências. Olhei a minha mesa, com muitos livros abertos e marcados, várias telas ligadas, e lembrei de uma frase do magnífico escritor moçambicano Mia Couto no livro O mapeador de ausências. O personagem, Diogo Santiago, estático e insone em frente ao dossiê que acabara de receber, diz: “E tenho agora todo esse passado olhando para mim.” Ao olhar para os meus antecessores, o que eu vejo é que eles carregaram valores atemporais e universais.
Valentim Magalhães, o fundador, teve uma vida intelectual intensa. Fez versos, folhetins, contos, panfletos, crítica, biografia, artigos, teatro, livros. Viveu a glória e o seu avesso. Sobre seu romance Flor de Sangue, o primeiro livro doado para a biblioteca da ABL, segundo o acadêmico Josué Montello, “se disse todo o mal possível, numa condenação quase unânime”. Quem o socorreu foi Machado de Assis que atenuou as críticas fazendo elogios comedidos. Valentim foi amigo de Luíz Gama, foi diretor de A Semana, que difundia ideias abolicionistas e republicanas.
Euclides da Cunha, engenheiro militar, desligado do Exército por ser republicano, jornalista e escritor esteve em Canudos, como se sabe, cobrindo a guerra para O Estado de S. Paulo. Publicou seu material no jornal e voltou às atividades de engenheiro. Enquanto construía uma ponte no interior de São Paulo e na barraca do acampamento acabou de escrever Os Sertões. Ele próprio, Euclides da Cunha, pagou a primeira edição. O livro fez sucesso imediato e seu autor virou celebridade nacional. Ao recebê-lo nesta Casa, Silvio Romero definiu Os Sertões como “uma das obras primas da mentalidade nacional”. Foi há quase 119 anos. Até hoje o livro é visto como “obra prima” nacional. Voltarei a Euclides.
Afrânio Peixoto, o terceiro ocupante, viveu episódios inusitados. Como médico legista fez a autópsia de Euclides da Cunha, a quem sucedeu. Foi eleito à revelia. Mário de Alencar fez a campanha por ele, imitando sua letra nos cartões de visita. Afrânio Peixoto estava no Egito, até então havia escrito apenas um romance. Escreveu vários depois de eleito. “Compreendi que necessitava justificar a escolha da Academia e fazer uma obra literária”, explicou. Foi um excelente gestor. A ABL sempre homenageia Afrânio Peixoto porque foi quem conseguiu junto ao governo francês a doação do Pétit Trianon. No discurso de inauguração da nova sede, em dezembro de 1923, Afrânio Peixoto agradece à França e diz que “nesse belo presente há um esperançado futuro”. Nesse futuro estamos nós. E ele fica bem aqui, acima de quem fala desta tribuna, para que não nos esqueçamos dele. Obrigada, querido antecessor.
Afonso Pena Junior dedicou vinte anos da sua vida a pesquisar um mistério literário, quem teria escrito a obra A Arte de Furtar, lançado com a assinatura de um “português anônimo muito zeloso da sua pátria”. Em 1652, a autoria passa a ser atribuída ao Padre Antonio Vieira, hipótese afastada pelos estudos de Pena Junior. A obra é uma joia da literatura lusitana e uma sátira dos costumes portugueses do século XVII. Na edição da ABL do livro de Pena Junior, A arte de Furtar e seu autor, o acadêmico Alberto Venâncio Filho define o trabalho do confrade como “obra fundamental de crítica de atribuição, a mais importante já realizada no Brasil”.
Eu tenho uma afinidade com ele. No discurso de posse contou que nunca havia sonhado com a Academia, achava que ela estava acima do seu plano. Quando foi convidado a se candidatar relutou, citou outros nomes e disse que o assustava “a grandeza especial da cadeira 7”. Afonso Pena Junior nasceu, em 1879, o Brasil ainda estava sob o horror da escravidão. Ele morreu em abril de 1968, quando o Brasil estava sob ditadura militar. A posse do seu sucessor, cinco dias depois do AI-5, teve uma emoção a mais.
Na noite de 18 de dezembro de 1968, um carro do Dops, cheio de policiais, estava do lado de fora da Academia Brasileira de Letras. Alguns agentes entraram. O administrador do edifício Orlando Vianna estava preocupado. Era dia de posse e aquele fato era inédito. O empossado, ministro do Supremo Hermes Lima, estava tranquilo. Vivera tensões maiores na vida. Seus olhos passearam pelo salão nobre, vendo gente que amava e admirava e, ao fundo, “atento e fraterno”, como descreveu, estava o educador Anísio Teixeira. Com a posse na Academia o jurista, escritor e político Hermes Lima encerrou seu livro de memórias, Travessia. Ele foi preso em 1935 e ficou um ano e vinte e dois dias sem culpa formada e sem processo, e ainda foi demitido da Universidade. Foi deputado constituinte em 1946. No governo João Goulart chefiou diversas pastas e no período parlamentarista foi primeiro-ministro. Em 1963, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi cassado pelo AI-5, dias após a posse na ABL.
Francisco Pontes de Miranda vem a seguir. Poliglota de erudição espantosa e de obra enciclopédica. É considerado um dos maiores juristas de todos os tempos no Brasil. Filho e neto de matemáticos, decidiu-se pelo Direito, abandonando a ideia de estudar ciências exatas na Alemanha. Aplicou os conceitos da matemática nos estudos do Direito. Ele conta no História vivida, livro de entrevistas coordenado por Lourenço Dantas Motta, que teve vários encontros com Einstein, para conversar sobre o trabalho de ambos. Na entrevista, ele criticou a ditadura militar. “Eles não gostam de mim, mas acontece que não podem me cassar. Nunca aceitei os horríveis atos que aplicaram.” A sua obra Democracia, liberdade e igualdade traz muitos conselhos para nós. Cito um. “A democracia para prosseguir e avançar, somente precisa de dois sustentáculos: liberdade, maior igualdade.”
A democracia é o valor maior a defender. Sem ela, nenhum outro avanço é possível. Neste tempo sombrio em que quase a perdemos, e em que as intimidações autoritárias permanecem sobre nós, é preciso refletir sobre o nosso papel na proteção da democracia. Os intelectuais não são espectadores nessa luta. Escolhem um lado. A mestra Hannah Arendt alertou, em seu Compreender: formação, exílio e totalitarismo, que: “Quem não se mobiliza quando a liberdade está sob ameaça, jamais se mobilizará por coisa alguma.”
Cito palavras ditas, há uma semana, no Supremo Tribunal Federal, pelo ministro Luis Roberto Barroso: “Nós vivemos uma ditadura. Ninguém me contou como era. Eu estava lá. Por isso para mim, para muitos de nós, para a nossa geração, o constitucionalismo e a democracia são tão importantes.” Os dois juristas da cadeira 7 defenderam o constitucionalismo e a democracia.
Há algo a notar antes de seguir. Dinah Silveira de Queiroz, de tantos livros marcantes e vertidos para outras línguas e outras artes, foi a segunda mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras. Eu sou a décima segunda. É pouco, é quase nada, em 128 anos de história. Entre o dia em que uma mulher assumiu a cadeira 7 pela primeira vez, em 1981, e hoje, em que a segunda mulher toma posse na mesma cadeira, passaram-se 44 anos, quatro meses e um dia. É muito longo o tempo que pedem de nós, queridas acadêmicas, Ana Maria, Rosiska, Fernanda e Lilia, às quais orgulhosamente me junto depois dessa noite. Aguardarei com alegria a posse, em breve, de Ana Maria Gonçalves. Somos tão poucas que quero falar os nomes das que não estão mais aqui: Raquel, Dinah, Ligia, Nélida, Zélia, Cleonice, Heloisa. Minha saudosa amiga Nélida, querida Heloisa, como gostaria de tê-las comigo nesta noite. A literatura feita por mulheres no Brasil é vasta, competente, sensível, culta, poética, épica, lúdica. Eu reverencio todas as mulheres escritoras do Brasil. Nossa obra coletiva é imortal.
Sou feminista, senhoras e senhores. Meu campo de pertencimento ficou claro para mim, aos 16 anos, durante a leitura do Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Na explicação sobre a alteridade da mulher em todas as culturas — essa estranha imposição de ser a segunda pessoa — eu enfim entendi o desconforto que sentia desde a infância e decidi jamais aceitar o papel de outra em minha própria vida.
No discurso em que recebeu Dinah Silveira de Queiroz, o acadêmico Raimundo de Magalhães Junior disse o seguinte: “Deve ser reconfortante, para vós, sra. Dinah Silveira de Queiroz, saber que aqui estais ocupando a cadeira que, na Fundação desta Casa, coube a um partidário da inclusão de mulheres no rol dos acadêmicos.” Vejam só. O fundador desta cadeira, Valentim Magalhães, defendia a entrada de mulheres na ABL. O que ocorreu apenas 80 anos depois da fundação. Hermes Lima foi outro defensor da causa. Dinah Silveira de Queiroz foi a maior líder na luta para que a Academia Brasileira de Letras aceitasse mulheres.
Sobre Dinah, o embaixador Sergio Corrêa da Costa, que a sucedeu, disse: “Sabemos todos o quanto ela se empenhou para que a Academia deixasse de ser um reduto masculino. Bateu-se, antes de tudo, pelo princípio. Vitoriosa, instou para que fosse Rachel a primeira a candidatar-se. Postularia, a seu tempo, a admissão a que a credenciava sua obra literária.” Uma obra de rica diversidade. Raimundo de Magalhães Junior destacou no discurso que a recebeu a segurança com que ela passava de um a outro gênero. “Do conto ao romance, da crônica à biografia, da literatura infantil ao teatro, da recriação do nosso passado histórico à ficção científica”.
O embaixador Sérgio Corrêa da Costa era um visionário. Li com espanto seu discurso de posse. Era 1984, e ele alertou que o mundo estava no umbral de uma nova era. “Muito mais do que as revoluções tecnológicas do passado, a da informática está destinada a afetar profundamente a organização geral da sociedade, os métodos educacionais, o equilíbrio econômico, a ordem social e, em larga medida, a própria soberania das nações.”
O futuro visto por ele ainda nos assombra. O embaixador informou que a união entre o computador, o telefone e a televisão produziria “o mais abrangente fenômeno de massa em todos os tempos”. E previu: “a engenharia do conhecimento e pesquisa de inteligência artificial — eis os setores de ponta nas pranchetas da Ciência Moderna”. E isso foi há quarenta e um anos.
Ele chegou aqui vindo do Itamaraty, casa que eu tanto admiro e na qual tenho muitos amigos. Casa que me serviu de refúgio quando cheguei a Brasília na ditadura. Os embaixadores que cuidavam da imprensa, Luiz Felipe Lampreia e Bernardo Pericás me deram credencial, contornando o SNI, para que eu pudesse cobrir as viagens presidenciais. No Itamaraty, tive muitos mestres e não poderia citar todos. Agradeço as aulas de Rubens Ricupero e Ronaldo Sardenberg. Ao querido Marcos Azambuja agradeço os conselhos recheados com o seu humor inimitável. Azambuja sempre me dizia o seguinte: “Miriam, você quando chegou aqui era um ser semi-bárbaro. Nós te civilizamos”. Eu respondia: missão incompleta, embaixador. Na última ligação que me fez, ainda me aconselhava, ainda tentava me civilizar.
Sérgio Corrêa da Costa disse que a função dos diplomatas é reconhecer em cada momento histórico os interesses nacionais a defender. Naquele momento e no atual é incluir os brasileiros na economia digital, para não aprofundar ainda mais a desigualdade social e econômica, que tem sido nossa triste marca.
A denúncia das desigualdades brasileiras está em toda a obra dos dois cineastas da cadeira 7. No discurso de recepção a Nelson Pereira dos Santos, o querido acadêmico Cícero Sandroni, que acabamos de perder, o define como o “patriarca do cinema brasileiro”. Vejam o que diz Sandroni: “Depois de Rio 40 graus, nunca mais a cultura brasileira poderia ser a mesma. Ela tinha sido levada para as ruas em busca da verdade e da compaixão em nome da justiça e da beleza, dos sonhos que alimentaram o que de melhor fizemos no nosso cinema.” Cícero Sandroni comparou os movimentos culturais dos anos 1950 e 1960. “Se sua contemporânea Bossa Nova era, na música, aquilo que aquela geração sempre sonhara para o Brasil, um projeto de harmonia e elegância para um país miserável e em chamas, o cinema inaugurado por Rio 40 graus nos exibia a face dolorosa do Brasil que não queríamos mais que existisse e que, portanto, não devíamos esquecer.”
O filme mostra o Rio a partir da periferia. Foi visto com deslumbramento e revelação pelo jovem Carlos Diegues. Ele relata em seu livro, Vida de cinema, o encanto do primeiro contato com esse filme, aos 15 anos. “Tinha certeza de que estava assistindo a algo inaugural, a uma obra fundadora.”
Vidas Secas, de 1963, foi outro marco. Muito elogiado também pela fotografia de Luiz Carlos Barreto. O próprio Nelson Pereira dos Santos relata o impacto. “Foi uma experiência chocante, revolucionária, radical, filmar sem filtro, com a lente nua, deixando-a brilhar diretamente sobre o rosto dos personagens. Essa foi a grande experiência do filme. Nada foi feito com luz artificial, tudo com a luz de Deus.” Nelson promete no início do filme, fazer “a transposição fiel para o cinema de uma obra imortal da literatura brasileira”. E consegue. Está lá, inteiro, o livro do mestre Graciliano Ramos.
Depois de Nelson, veio o querido Cacá Diegues. Diante dos dois, eu me perguntei o que eu faço aqui, que nem sou do cinema. Logo no terceiro parágrafo do seu discurso de posse Cacá me acalmou. “A cadeira 7, como qualquer outra da Academia, não é propriedade de nenhuma atividade. Não é porque foi ocupada por um dos maiores cineastas da nossa história, que ela passa a ser um privilégio do cinema brasileiro. Na Academia, com toda a Justiça e bom senso, poeta não precisa ser sucedido por poeta, romancista por romancista, nem cineasta por cineasta. As virtudes de uma candidatura devem ser outras, o que aliás reforça meu orgulho de estar aqui”.
As virtudes de Cacá são tantas, que qualquer homenagem será insuficiente. Carlos José Fontes Diegues, nasceu em Maceió, Alagoas, no dia 19 de maio de 1940. Dos fatos da sua vida, todos sabem. Morou a maior parte do tempo no Rio. Casou-se com Nara Leão, teve os filhos Isabel e Francisco. Esteve no exílio. Casado anos depois com Renata Magalhães conheceu Julia com um ano, filha de Renata, a quem estendeu a sua paternidade. Do casamento nasceu Flora, talentosa atriz com quem Cacá chegou a filmar em O Grande Circo Místico, e cuja morte precoce o marcou dolorosamente.
Sua obra começou na onda criativa dos Centros de Cultura, do movimento estudantil e é parte da floração exuberante de criatividade trazida pelo cinema novo. Logo cedo se juntou a cineastas como Glauber Rocha que faziam uma renovação radical na estética e linguagem do cinema. A ditadura atravessou sua carreira e ele a enfrentou com arte. Cacá dá uma ideia de como entendê-lo nesta frase: “Nem sempre fiz o que queria, mas nunca fiz o que não queria. De tudo o que vivi, nada se compara ao Cinema Novo, uma enorme excitação, o imenso prazer de compartilhar a vida e o cinema com aquelas pessoas e nossas ideias.”
Eram aquelas pessoas e as nossas ideias. Como no modernismo de 1922, na Bossa Nova, o Cinema Novo buscou a forma brasileira de fazer arte. O legado de Cacá Diegues é imenso. Começando de um ponto luminoso, mas sem qualquer ordem cronológica, queria falar de Bye Bye Brasil. A sutileza do título é que ele não estava se afastando do Brasil, mas se aproximando. Enquanto seus personagens vão viajando na Caravana Holliday, o cineasta descortina o Brasil, passando por dores que ainda sangram. Em plena ditadura, ele ousou falar da dor do negro, do assassinato cultural dos indígenas, dos crimes do garimpo ilegal, e daquela ferida aberta no meio da floresta. Tem cenas como a do caminhão cruzando a Transamazônica recém aberta que dão ao filme toques de documento histórico. Com olhos sempre no futuro, Cacá dedica a obra, lançada em 1979, aos “Brasileiros do século XXI”.
Ele foi jornalista também. Quando estudante, foi redator-chefe do Metropolitano, um semanário respeitado e muito bem sucedido. Voltarei a Cacá, mas quero falar do jornalismo, sempre presente na ABL. O jornalismo pavimentou meu caminho e pertencer ao ofício tem sido meu orgulho há mais de meio século. Muitos jornalistas são membros hoje da ABL, muitos estiveram antes. Integrantes da profissão estavam entre os fundadores. O jornalismo me trouxe várias vezes aqui para entrevistar acadêmicos, e lembro com especial saudade das entrevistas com Nélida Piñon.
Foi o jornalismo que me levou diversas vezes à casa de José Mindlin e Guita, com quem tive conversas memoráveis. Eu gostava tanto de ir lá que chegava cedo. Um dia apareci muito antes da hora marcada. Mindlin apontou uma montanha de livros e disse “Vá se divertindo com esses livros que ainda não estão catalogados”. O primeiro que peguei era o livro da exposição sobre o centenário de Machado de Assis feita pelo Ministério da Educação e Saúde em 1939. Abri e me deparei com o testamento manuscrito do nosso escritor maior. “Eu, Joaquim Maria Machado de Assis, morador à rua Cosme Velho número 18, querendo fazer o meu testamento, efetivamente o faço.” Gostei dessa determinação e levei para a vida. Querer fazer e efetivamente fazer. Um detalhe curioso a contar é que o nosso Machado depositou suas economias em títulos da dívida pública. Mindlin me deu esse livro, que guardo com carinho.
Jornalismo também é literatura. Nós a fazemos diariamente, contra o relógio, missão cada vez mais difícil, na era em que o tempo se abrevia com as novas mídias e novas tecnologias. Escrever sobre um fato no instante mesmo em que ele acontece, este é o desafio. Hoje temos um inimigo opressivo, as fake news, construídas para sufocar a verdade. A mentira é usada como método de ação e agressão política. O jornalismo tem sido uma trincheira na luta contra a informação falsa feita para confundir, manipular e, por fim, destruir a democracia. É a democracia o alvo maior dos fabricantes de mentiras.
Foi jornalismo a obra de Euclides da Cunha. Com a força do seu relato sobre Canudos legou ao país a história de um extermínio. Todos conhecem Os Sertões, ele é lido e debatido desde que foi publicado em 1902. Ler as anotações que fez no seu Caderno de Campo é apaixonante. Enquanto andava por Canudos ele anotava detalhes, diálogos, frases esparsas, descrição das paisagens, de batalhas, parágrafos inteiros que têm a mesma dicção do livro. Nessas notas, organizadas por Olímpio de Souza Andrade, se vê a genialidade dele e do povo. Ele relata que perguntou a uma prisioneira onde o marido estava quando foi morto. “Fulminou-me com o olhar”, ele escreveu. E registrou a resposta da mulher: “E eu sei?! Então querem saber do miúdo até o graúdo? Que extremos.”
O livro esteve no centro de muitas polêmicas. Lido com olhos de hoje é fácil encontrar definições que não são mais aceitáveis. Mas há um ponto que eu gostaria de ressaltar sobre ele. Euclides da Cunha foi aos poucos mudando a própria opinião a partir dos fatos que presenciou. O que era visto por ele como campanha heróica do Exército contra os inimigos da República, passa a ser entendido de outra forma pelo que ele viu, apurou, testemunhou. Hermes Lima conta que, em 1945, no primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, Oswald de Andrade, em discurso, disse: “Aprendemos a testemunhar com Euclides da Cunha.” No seu Caderno de Campo, Euclides anotou. “Eu fui um espião da História.” Na “Nota Preliminar”, de 1902, o autor escreve “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, no significado integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo.” Euclides da Cunha mudou de ideia diante dos fatos, como um bom jornalista.
Ao descrever as primeiras derrotas do Exército, ele fala da simbiose entre o meio ambiente e o sertanejo. “Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmamente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados. (…) A natureza toda protege o sertanejo.”
A natureza toda protege o Brasil. A Caatinga, o Cerrado, o Pampa, o Pantanal, a Amazônia, a Mata Atlântica. Precisamos de todos os nossos biomas, e eles dependem uns dos outros. O Brasil é o país com a maior biodiversidade do planeta. Porém, nosso patrimônio natural está sob ataque. Diário, incessante, dos que ainda hoje mantêm a obsoleta visão de que proteção ambiental impede o desenvolvimento. Do biógrafo da Mata Atlântica, o escritor Warren Dean, autor do magnífico A ferro e fogo escolhi um alerta como epígrafe do meu livro Amazônia na encruzilhada. “O desaparecimento de uma floresta tropical é uma tragédia cujas proporções ultrapassam a compreensão ou a concepção humanas.”
O cineasta Cacá Diegues fez parte do diálogo do Brasil com suas dores e virtudes. Foi também poeta precoce. Teve doze poesias suas publicadas no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil por ninguém menos que o crítico Mário Faustino, quando tinha 18 anos. Faustino o define como “um dos casos mais espantosos da imprevisível poesia”. E diz que Carlos Diegues poderia ser no futuro um poeta da altura dos maiores do mundo como Ezra Pound, João Cabral e Jorge de Lima. Cacá não apenas fugiu desse destino, como queimou a maioria das suas poesias. O poeta e acadêmico Antonio Carlos Secchin contou na sessão da saudade que insistiu que ele voltasse aos poemas e cedesse alguns para a publicação pela ABL. Diz Secchin que ele “pareceu receptivo à proposta”, mas não levou em frente o projeto porque estava absorvido por incessantes demandas profissionais. Além dos artigos que escrevia aos domingos no jornal O Globo, ele filmava Deus ainda é brasileiro.
Cacá contou várias vezes um fato de extrema beleza. Quando ele foi pela primeira vez ao cinema, com apenas cinco anos, levado pela tia Amélia, ele ficou paralisado com tamanha luminosidade. Ela o puxou pela mão e disse: “Não bote a mão na tela, menino, que ela fica lá presa pelo resto da vida.” A mão de Cacá esteve por toda a vida presa na tela.
Foi o que aconteceu desde o primeiro filme até o último, uma rica, inquieta e extensa filmografia, da qual é difícil escolher alguns para análise. Em Ganga Zumba, o primeiro longa, Cacá faz uma revolução. E era uma criança. Completou 23 anos durante as filmagens. Com elenco quase totalmente negro, entre os atores, Antonio Pitanga e Cartola, ele conta a história da fuga para Palmares, revisita o mito de Zumbi, com o qual conviveu desde a sua primeira infância em Alagoas, quando Bazinha, a mulher que cuidava dele e dos irmãos lhe contou que “Zumbi ainda vivia ali, perto de Maceió, na Serra da Barriga”. O filme, lançado no ano de 1964, é um grito em favor do povo preto no tempo em que o país começava a viver a fase mais aguda da negação oficial do racismo brasileiro. Ele voltou ao tema, vinte anos depois, em Quilombo, realizando o sonho de recriar Palmares.
Carlos Diegues trabalhou em filmes icônicos como produtor, ou co-produtor, entre eles Terra em Transe. Como diretor, fez Cinco vezes favela, Ganga Zumba, A grande cidade, Os Herdeiros, Quando o carnaval chegar, Joana Francesa, Xica da Silva, Chuvas de Verão, Bye Bye Brasil, Quilombo, Um trem para as estrelas, Dias melhores virão, Veja esta Canção, Tieta do Agreste, Orfeu, Deus é Brasileiro, O maior amor do mundo, Nenhum motivo explica a guerra, O grande circo místico. Filmava Deus ainda é brasileiro, quando morreu. Esteve em todos os festivais importantes do mundo, e ganhou inúmeros prêmios. No documentário sobre a obra de Cacá, Para vigo me voy, há uma fala dele bem no início que destaco: “Assim como não existe democracia sem povo, não existe cinema popular e democrático sem público. Se eu quisesse sintetizar meu objetivo como cineasta seria este: compreender que a solidão você cura se interessando pelos outros.”
Toda a sua obra, desde o 5x Favela, em que fez o curta Escola de Samba Alegria de viver, é inspiradora. Cinquenta anos depois ele e a cineasta Renata Magalhães, sua mulher, produziram o 5 x favela, agora por nós mesmos, escrito e realizado por cineastas das favelas do Rio. Sobre isso Cacá diz o seguinte: “Me senti como se estivesse amarrando as pontas da história do cinema brasileiro moderno. O cinema brasileiro tinha uma história.” Sim, o cinema brasileiro tem uma história, e ela não pode ser contada sem falar de Carlos José Fontes Diegues.
Em 1978, em plena ditadura, ele criticou a esquerda e cunhou o termo “patrulhas ideológicas”. Isso incendiou o debate nacional. A nossa Heloisa Teixeira e Carlos Alberto Pereira fizeram um livro sobre o debate e entrevistaram Cacá. Ele contou que não houve estratégia naquela fala, estava apenas dando entrevista para divulgar “Chuvas de verão”. “A coisa foi muito espontânea”, ele disse. Mas acrescentou: “Estou convencido de que não inventei nada. Creio apenas ter usado, por acaso, uma expressão que correspondia a um sentimento geral da cultura brasileira.”
Ele fez outro alerta, anos antes do fim da ditadura. Ouçam: “Eu não sou o que fui ontem e não sou o que serei amanhã. E isso só é possível dentro da democracia. É preciso tomar cuidado porque a democracia é uma coisa muito dolorosa. Confortável e cômodo é o fascismo, onde só há uma opinião. Democracia não, é doloroso paca: expõe fratura, expõe fissuras e tem que ser assim mesmo, com muita crise.” Eis senhoras e senhores, Cacá Diegues, o inquieto, revolucionário, inovador, provocador de debates, que eu tenho a honra de suceder.
O acadêmico Geraldo Carneiro que fez o discurso de recepção, contou que Cacá Diegues costumava dizer sobre o Cinema Novo que aquele grupo de cineastas tinha apenas três pretensões: “mudar o cinema, mudar o Brasil, mudar o mundo”. É maravilhoso quando a juventude sonha assim alto.
O jovem Castro Alves tinha sonhos altos. Era uma celebridade. Era recebido por multidão de fãs em aplausos frenéticos, quando chegava em bares, teatros, festas. Dois fundadores da ABL descrevem a razão do sucesso. Ruy Barbosa, com quem ele fundou na Bahia um centro republicano, explica que Castro Alves tinha tal capacidade de comunicação porque “no mais íntimo de sua alma, ( era) impetuosamente apaixonado pela verdade e pelo belo”. Lúcio de Mendonça descreve, segundo o ensaio de Afrânio Peixoto. “Quando se mostrava à multidão, já entusiasmada só de vê-lo, quando a inspiração lhe acendia nos olhos os fulgores deslumbrantes de gênio, era grande e belo como um deus de Homero.”
O poeta desafiou a ordem escravocrata e monárquica. Era libertário, abolicionista e republicano. Para emprestar sua potente voz aos negros foi preciso ver a dor do outro, não achar natural a ordem daquele tempo. Assim se explica o poeta público. Mas ele cantou também o amor romântico em muitos poemas. Já doente, ele vê pela última vez, no palco, sua amada, a atriz Eugênia Câmara, e envia para ela a poesia Adeus. Ela responde com versos também, e é premonitória.
“Sim que Deus iluminou sua fronte
Com um raio de gênio! E Glória
Vive, canta, sonha este horizonte
O Brasil quer teu nome em sua história.”
O nome de Castro Alves permanece na história. Ele escreveu até o fim. Um poema datado de 5 de junho de 1871, véspera da sua morte começa assim.
“Na hora em que a terra dorme
Enrolada em frios véus
Eu ouço uma reza enorme
Enchendo o abismo dos céus.”
Me lembrou Gênesis, e o versículo que diz: “E havia trevas sobre a face do abismo.”
Castro Alves foi um cometa brilhante que passou pelo Brasil. E ele viveu apenas 24 anos. Seus versos que os brasileiros conhecem, mesmo hoje, 154 anos depois de sua morte, são perenes. Servem de amparo nas dores coletivas, e de libelo contra as tiranias. Eram versos de Castro Alves que líamos em Vitória nos tempos da minha juventude. Foram os versos do poeta que acalentaram os jornalistas junto ao túmulo de Vladimir Herzog, em 1975, quando o presidente do Sindicato, Audálio Dantas, invocou o “Senhor Deus dos Desgraçados”, diante daquele horror perante os céus.
Meu primeiro contato com a estética da palavra foi com Castro Alves. Minha irmã mais velha Elizabeth declamava seus poemas épicos no palco do Colégio Caratinga. Eu me lembro de, aos 7 anos, me sentir arrebatada por aquele relato dramático. Beth, aos 15 anos, linda e emocionada, começava. “'Stamos em pleno mar”. Eu mesma ia com as asas do albatroz ver de perto a infâmia e a covardia. A força da palavra eu descobri em Castro Alves, naquele momento inicial da vida.
Muitos anos depois, em 1998, meu pai Uriel Leitão estava nos seus últimos dias, e eu fui passar o fim de semana com ele em Belo Horizonte. Antes liguei e perguntei: “Meu pai, que presente você quer que eu leve?”. Ele me respondeu: “Traga poesia, minha filha.” Eu levei Castro Alves. Naquele fim de semana, pouco antes de sua morte, lemos juntos os versos do poeta baiano. Muitos poemas meu pai sabia de cor.
Castro Alves é um patrimônio do Brasil, da literatura, e é o patrono da cadeira na qual respeitosamente vou me sentar. Mas eu precisava contar às senhoras e aos senhores, nessa noite, que ele era também o poeta lá de casa.
E que casa foi a minha. Que escola de vida. Meu pai, pernambucano, superou a extrema pobreza nordestina através da educação. Limpando o chão e o banheiro da escola ele estudou e virou professor, diretor de colégio e pastor presbiteriano. Minha mãe, Mariana, capixaba, foi para Minas bem pequena para morar numa fazenda e foi preciso também lutar para estudar. Ela continuou estudando mesmo depois de ter filhos. Fez o curso Normal e Pedagogia e foi professora de escola pública. Muitas vezes vi minha mãe estudando entre seus filhos, também estudantes.
Era uma casa onde se estudava, onde se lia, onde a Bíblia era lida e discutida, cheia de livros e de muito estímulo à leitura e à educação. Esse lar me trouxe até aqui. Devo tributo impagável à minha irmã Beth, que foi minha grande orientadora no mundo dos livros. Beth morreu há onze meses. A ela dedico a alegria do dia de hoje.
Tenho onze irmãos. Perdi três, seis estão aqui comigo hoje aqui e eu gostaria de falar o nome de todos os onze, pela ordem. Elizabeth, Ana Maria, Wilma Lúcia, Uriel Junior, Cláudio Cezar, Jeanete, Ulisses, Lysias, Alexandre, Ricardo, Simone. Obrigada meus irmãos queridos. Obrigada queridos sobrinhos, cunhadas e cunhado. Dos meus sobrinhos, 24 vieram. Junto com minha família nuclear vocês têm sido, ao longo da vida, meu rochedo nos momentos difíceis. E foram muitos os momentos difíceis. Por isso agradeço a cada um, a cada uma, o amor de toda a vida.
Meus amados filhos, Vladimir e Matheus, que aventura temos vivido até aqui. Vocês dois nasceram em tempos muito duros para mim e para o país. E foram luz no meio das trevas. Numa inversão da ordem natural, muitas vezes eu precisei da mão de vocês para seguir adiante. Vla, obrigada por sua alegria, Matheus, obrigada por seu acolhimento. Que lindo e forte é o amor que nos une, meus filhos.
Querido enteado Rodrigo, obrigada por ser um pouco meu filho, também. Minhas noras, obrigada. Meus amados netos, Mariana, Daniel, Manuela e Isabel, vocês encantam meus dias e me dão esperança.
Sérgio, meu amor, muitos sabem essa história. No nosso primeiro encontro eu perguntei: “qual o seu livro favorito?” Você respondeu: “Grande Sertão: Veredas” e eu disse: “Resposta certa”. Nos últimos 34 anos você tem me dado muitas respostas certas. Nosso romance é todo bordado de livros. Os que lemos, os que escrevemos, os que amamos. Que sorte, o nosso encontro literário e amoroso. Quando você chegou, Sérgio, a vida recomeçou. Poderosa como as manhãs.
Senhoras Acadêmicas, senhores acadêmicos, eu venho de Minas Gerais e trago tatuado no coração o lema dos conjurados. Libertas quae sera tamem. Um tempo morei no Espírito Santo e trouxe comigo o que está escrito em sua bandeira, “Trabalha e Confia”. Escolhi há 39 anos a linda cidade do Rio de Janeiro para viver, ser feliz e realizar meus sonhos.
Nunca andei só no caminho que tive que percorrer até chegar ao Pétit Trianon. Vim com todos eles, essa grande família, vim com os valores que guardei, vim com os livros que li e escrevi. Vim com o jornalismo. Vim com a ajuda dos amigos jornalistas que me sustentaram nos muitos revezes profissionais. Quero citar pelo menos quatro amigos decisivos, Sidnei Basile, Marcos Sá Correa, Ricardo Boechat e Zuenir Ventura. Obrigada mestre Zu.
Na prisão uma dor que me impuseram foi não ler. Nenhum livro podia entrar na minha cela. Eu então buscava na memória, trechos e tramas dos livros que havia lido e eles me ampararam nos dias da minha agonia. Ficou mais profundo meu caso de amor com os livros.
O amor aos livros me trouxe até aqui.
Agradeço a todas as pessoas que nesse espaço, ou longe daqui, se alegram com minha alegria.
Agradeço à Academia Brasileira de Letras.
Confesso, por fim, que nem entendo a dimensão deste momento, por isso recorro ao mestre João Guimarães Rosa, numa fala de Diadorim a Riobaldo: “A vida da gente faz sete voltas — se diz. A vida nem é da gente…”
Muito obrigada