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Ano novo, ano velho

 

É sempre o mistério do tempo. Ao ano velho todos ridicularizam. As atenções são concentradas no ano que vem, a adulá-lo com mensagens e gestos que pedem que seja bom e generoso. A justiça nos manda em primeiro lugar agradecer que o ano velho nos tenha preservado a graça da vida. Viver, diziam os latinos, depois a gente confere o resto. E a cada ano que passa, vivemos.


Meu avô, quando fazia aniversário, sempre dizia: "Ruim é não fazer". Ele mesmo, que morreu aos 96 anos, quando perguntavam pela sua idade, confessava, sem esconder nada, e acrescentava: "Vê se tu chegas lá".


Uma coisa que devemos louvar nos anos é que todos gostam das mesmas coisas e são seduzidos pelos mesmos sabores. Na minha infância eu já sabia que gomos de romã davam ao Ano Novo motivos para que ele nos tratasse bem. Depois, todo ano as pessoas colocavam, para passar a meia-noite, um dinheiro no bolso. Assim não teriam dificuldades financeiras.


Hoje, vejo que os anos da fase do conhecimento e da comunicação gostam de lentilhas -que no interior do Maranhão nem se sabia o que era -, roupa branca, flores no mar, velas na praia e fogos de artifício. Os meus anos da infância gostavam de sinos da meia-noite, rezas, ladainhas e louvações. Naquele tempo só havia um senhor do universo: o Criador. Hoje existem muitos deuses, e um deles, responsável pelo Ano Novo, é os Estados Unidos. Ele dirá o que vai acontecer. Outro é o Bill Gates. Aqui o Macaco Simão.


Mas o Ano Velho fez um feio danado neste fim de dezembro: o maremoto no Oceano Índico, marcando sua passagem pela tragédia que se abateu sobre aquela região, ceifando vidas e esperanças de vida. Ficará para nós, de formação lusitana, o que foi o ano de 1755, quando Lisboa desapareceu sob o grande terremoto e o rei dom José ficou debaixo de uma tenda vários meses, com medo de voltar para casa. Foi aí que o marquês de Pombal firmou-se, no conhecido diálogo com o soberano: "O que devemos fazer?", perguntou o rei. Pombal respondeu: "Enterrar os mortos e cuidar dos vivos". Duas coisas muito difíceis nas tragédias.


Para mim, particularmente, jamais esquecerei este 2004, quando perdi minha mãe, até hoje uma saudade que não passa.


No Pinheiro da minha infância, nenhum bicho preto podia aparecer na rua no dia 1º. Eram escondidos, presos nos currais, sem direito a circular. Traziam mau agouro. Outras coisas -acho que deve ter sido uma reivindicação das mulheres - eram comentadas como segredo: os maridos deviam, na noite da passagem de ano, procurar suas esposas, para que o ano fosse generoso na vida sexual e para a felicidade do casamento. Por isso, talvez, a cara das mulheres fosse de contida satisfação. Quando soube disso, já menino grande, eu as olhava com olhos desconfiados. Outro costume era dar esmolas, fazer ceia para os mendigos e comer garibaldi, as ossadas do peru da ceia, num cozido ensopado com pirão do caldo.


Com o passar dos anos, quando começa o mar alto da guerra pela sobrevivência, eles se acumulam como se fosse num depósito de coisas arquivadas. Só a infância é eterna e diferenciada. É dela que retiro uma personagem daqueles anos. Maria Roxa, crioula tida como doida, rodopiando brejeira, com uma flor no cabelo, chega na porta de nossa casa, os meninos rindo de sua loucura, cantando, e de repente, ela levanta a saia e grita: "Olha a onça". E aí nossa inocência ia embora.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 31/12/2004

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 31/12/2004