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A antilista da Odebrecht

 

Está em curso no Brasil uma revolução sui generis. Sem armas, sem exércitos, sem líderes revolucionários autonomeados. Uma velha ordem está sendo derrubada. Com ricos e poderosos sentados no banco dos réus, assiste-se à degola metafórica de toda a classe política, sem que desponte uma nova ordem como as que anunciam as revoluções.

O sistema político partidário está sendo contestado de fora para dentro. O que nos confronta com um paradoxo: a política está em estado terminal enquanto a democracia está mais forte do que nunca.

Milhões de brasileiros clamam por decência, uma palavra fora de moda, uma causa justa que hoje mobiliza mais do que as caquéticas ideologias. Querem coisas simples, como viver num país em que o dinheiro de impostos seja aplicado na saúde da população e não saqueado por criminosos cujo cinismo e insensibilidade moral raiam à obscenidade. 

O Brasil era governado por uma empresa que corrompeu a República. Tinha, no Senado, uma bancada majoritária, a soldo de seus interesses. A população está chocada como quem foi assaltado. E fomos.

Desmascarados, estes parlamentares perderam a legitimidade, sobretudo para votar uma reforma política. Com mão de gato, ainda tentam incluir na proposta de voto em lista fechada (destinada a garantir sua reeleição e foro privilegiado) o sigilo sobre os nomes nela incluídos. Para eles, não existimos.

O desrespeito à população tem sido a tônica da vida política. Marqueteiros pagos com dinheiro ilícito vendem uma imagem falsa dos candidatos tal como aconteceu na última eleição presidencial. O recurso sistemático à impostura se espalha país afora, chegando até as eleições municipais. Haja dinheiro de empresas para pagar fortunas a quem melhor vender gato por lebre ao eleitor.

Esta deformação alimenta um discurso perverso: ladrões foram eleitos pelo povo, logo a culpa é do povo que vota mal. Não, o povo compra o que a propaganda enganosa, financiada pelo roubo do dinheiro público, lhe vende. Os recursos que deveriam pagar escolas e hospitais financiam campanhas publicitárias que prometem as escolas e os hospitais que o povo não verá jamais. Mágica da corrupção que desmoraliza a democracia legitimando com o nosso voto os mesmos que nos assaltam.

O juiz Sérgio Moro restabeleceu a confiança na Justiça graças a um princípio claro e simples: ninguém está acima da lei. Moro não está só. Com ele, juízes, procuradores e a Polícia Federal estão envolvidos na apuração dos crimes. A reconstrução do país já está em curso, é preciso lembrar, quando a exposição diária à escabrosa criminalidade que nos assola estimula a depressão e a impotência.

O sistema político acabou e deixa um vazio. O buraco negro da política, sorvedouro de energias e esperanças, não se transforma da noite para o dia. Não saber como se faz o que precisa ser feito não impede que continue a ser preciso fazê-lo. A solução desse quebra cabeças tem que ser buscada em outros espaços e atores, nas novas formas de reivindicação de direitos e de ação transformadora já presentes na sociedade, a exemplo do que se fez na Campanha da Fome, de Betinho, e na Lei da Ficha limpa. A política só se regenera da sociedade para os partidos. 

Desmistificar o discurso paralisante da falta de lideranças no país é parte da reconstrução. Há lideranças, sim, que, por palavras e obras, conquistaram a confiança da população. Drauzio Varella, sem ser político, é uma liderança nacional. É urgente fazermos um mapeamento, nos círculos de confiança em que nos movemos, de gente em quem votaríamos com orgulho. 

Precisamos de uma antilista da Odebrecht, feita de homens e mulheres em quem a população se reconheça e que possa vir a representá-la. Para que essa lista de honra e não de vergonha seja viável precisamos de uma campanha nacional em prol da possibilidade de apresentação de candidaturas independentes, desvinculadas dos partidos e suas máquinas carcomidas. 

Precisamos de uma Constituinte com o mandato de refazer as instituições políticas adaptando-as aos tempos em que vivemos, às novas formas de expressão de opiniões e de comunicação que estão hoje à nossa disposição.

Do estatuto de um dos países mais corruptos do mundo passamos ao do país que melhor luta contra a corrupção. A volta por cima que estamos dando, quero ver quem dava. O mais difícil foi feito: enfrentar gigantes empresariais e caudilhos, quebrar o padrão de impunidade que estimulava a bandidagem.

Inovar é preciso. O novo não vem do velho. Ele se gera a si mesmo e cria o espaço para se expandir.

O Globo, 22/04/2017