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Bordolesa e a delação premiada

 

Nos meus tempos de mocidade, a figura do delator era infame. Joaquim Silvério dos Reis, que denunciou Tiradentes, era um maldito. Judas, que vendeu Cristo nas famosas trinta moedas, era um judas. Calabar, o que delatou os brasileiros, entregando-os aos holandeses, ou Lázaro de Melo, que fez a mesma coisa com Bequimão, eram insultos irreparáveis se aplicados a alguém.

A coisa está mudando. Não é bem assim. Pode até ser um ato heróico e louvável. Os delatores, pelo bem público, redimem a lista dos anti-heróis e se incorporam a uma tábua de aliviados benfeitores.


A delação premiada não é invenção brasileira. Vem de longe. Sólon, na velha Grécia, o primeiro das leis da democracia, instituiu-a para estimular pessoas a combater o contrabando e a proteger o Estado. É Plutarco, em suas "Vidas Paralelas", quem nos dá notícia disso. Depois os romanos também a utilizaram. E os tempos modernos fizeram o mesmo. Era a forma escolhida dos nazistas para pegar judeus, técnica de exportação adotada pelo governo de Vichy, aquele que traiu a França. Na Rússia de Stálin, chegou-se ao máximo da denúncia premiada erguendo estátuas ao menino Pavlik Morozov, condecorado e elevado a herói porque denunciara o pai, que estava traindo os ideais socialistas!


Na atual crise brasileira, a delação premiada está na moda, e muitos heróis estão aparecendo, desde Valério até Buratti.


Na Revolução de 64, também houve uma onda avassaladora de denuncismo e de caça aos infiéis. Chegou a tal ponto que o meu querido amigo Alexandrino Rocha, cabra danado de inteligente, notável "causeur", que foi secretário de imprensa de Arraes no seu primeiro governo de Pernambuco, contou-me uma história muito significativa daqueles tempos:


Sinfrônio, nome de cantador, era um guarda-mosquito, daquela legião de homens benfeitores que saía pelo interior do Brasil montado numa burra, correndo caminhos e subindo morros para pulverizar as casas contra muriçocas e barbeiros que transmitiam malária e doença de Chagas. Veio o regime militar. Todos denunciavam a todos. Sinfrônio procurou logo Alexandrino, com receio de ser delatado. "Olhe, compadre, estou com muito medo de perder meu emprego. O senhor sabe que os inquéritos militares estão bisbilhotando tudo. É que a vida inteira eu embolsei a diária que o governo paga para alimentar minha burra Bordalesa. E, agora, depois dessa tal Revolução, Bordalesa, que está muito magra, vive me olhando desconfiada. Eu acho que ela vai me denunciar. O que eu faço?". Alexandrino respondeu: "Capim e milho na burra e não deixe ela aparecer na cidade". Bordalesa não denunciou, mas foi premiada.


Nessa linha, diz-se em Brasília que um comitê de mulheres traídas está fazendo um fundo para entregar àquela senhora de Crato com nome inglês que tem uma firma de recepcionistas. Se ela falar, recebe a bolada.


O problema da delação premiada é saber onde está a verdade e o interesse das pessoas. O que é necessário, desejável e urgente é que os envolvidos não mintam tanto e falem a verdade. Com esta, nada de prêmio a quem se chafurdou na lama da corrupção. A opção entre tortura e delação premiada para investigar crimes é trágica para os direitos humanos. Isso é o que se diz no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, hoje, os grupos de direitos civis estão ativos contra esses dois tipos de conduta.


Mas, enquanto isso não acontece, vamos nos acostumar a ouvir a voz dos presídios para ajudar as CPIs na solução da crise.


Agora é esperar a vez de Fernandinho Beira-Mar.




Folha de São Paulo (São Paulo) 26/08/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 26/08/2005