Continuando essas conversas que começaram no São João, com cantadores e afins, em livro que estou escrevendo (título da coluna). Encerrando a série.
GERALDO AMÂNCIO PEREIRA, cantador (de Cedro, Ceará). Casa de Lourival Batista, em são José do Egito. Numa noitada cantador conhecido como Pereira estava dando alterações, no recinto, por conta de ter na cabeça mais Pitu do que devia. Foi quando Raimundo, filho mais velho de Louro, virou-se para Geraldo e, brincando com seu nome, disse
‒ Geraldo, amanse o Pereira.
OLIVEIRA DE PANELAS, de Panelas (Pernambuco), conhecido como o Pavarotti dos Cantadores. No Bar Savoy, onde Carlos Pena Filho escreveu seu famoso poema Chope
– Por isso no bar Savoy
O refrão é sempre assim:
São trinta copos de chope,
São trinta homens sentados,
Trezentos desejos presos,
Trinta mil sonhos frustrados.
Cantoria com Otacílio Batista, irmão de Dimas e Lourival (Louro do Pajeú), para Manuel Bandeira A voz do Uirapurú. Ali, fui testemunha de uma cena inacreditável, envolvendo a bandeja em que os apreciadores depositam dinheiro para a dupla. E, na hora, lhe mandei esse bilhete
– Meu amigo Oliveira Pare, sinta, escute e veja Otacílio pegou 20 Quero que Deus me proteja Mas nunca vi cantador Roubar a própria bandeja. Pois no calor da peleja Como quem bebe aguardente Comeu o teu queijo frio Bebeu o teu café quente E o que era teu e dele Ficou foi dele somente.
Cantado desde o Século XIX, O que é que me falta fazer mais no início era só mais um mote de décima, em dez sílabas, até ser transformado em gênero pelo cantador Ivanildo Vilanova. Nele, ganha quem inventar mais, mentir mais, se cobrir de mais honrarias; seguindo-se estribilho cantado, em conjunto, pelos dois cantadores. Oliveira, numa cantoria, fez essa maravilha.
– Certo dia eu estava em Hollywood
Em Marlboro, ou talvez no Arizona Foi então quando encontrei-me com Madonna
Que convidou-me para um banho de açude.
E se a galega mostrou ter muita saúde
Eu também lhe mostrei ter muito gás
E nos domínios das táticas sensuais
Tudo quanto ela quis, fiz em inglês
E depois perguntei em português
O que é que me falta fazer mais.
PATATIVA DO ASSARÉ, cantador e cordelista (de Assaré, Ceará). Sua casa fica a 18 quilômetros da cidade e precisava falar com o prefeito. Só que foi várias vezes à Prefeitura e o homem nunca estava. Por isso deixou em sua mesa bilhete, como se fosse um cordel, que acabava assim
‒ Ainda que alguém me diga
Que viu o mudo falando
Um elefante dançando
No lombo de uma formiga.
Não me causará intriga
Escutarei com respeito
Não mentiu esse sujeito
Muito mais barbaridade
Resultado, acabou preso. Na cela, encontrou gaiola com uma patativa – que é ave de belo canto. Então escreveu versos que ganharam o mundo
‒ Linda vizinha pequena
Temos o mesmo desgosto
Sofremos da mesma pena
Embora em sentido oposto.
Meu sofrer e teu penar
Clamam a divina lei
Tu presa para cantar
E eu preso porque cantei.
Cego – Amigo José Pretinho Eu não sei o que será De você no fim da luta Porque vencido já está Quem a paca cara compra Paca cara pagará.
É haver numa cidade Prefeitura sem prefeito.
PELEJA DO CEGO ADERALDO (de Crato, Ceará) COM ZÉ PRETINHO (de Tucum, Paraná). Assim, como Pelejas, são conhecidos os grandes desafios entre os cantores. Mais famosa delas é a do Cego Aderaldo contra Zé Pretinho. Com o desafio já ganho, e para encerrar com brilho, o Cego tripudiou
Cego – Amigo José Pretinho
Eu não sei o que será
De você no fim da luta
E o outro, sem entender esse trava-língua, piorou sua desgraça Zé Pretinho
– Cego, estou apertado
Que só um pinto no ovo
Estás cantando aprumado
Cego – Digo uma e digo dez
No cantar não tenho pompa
Presentemente não acho
Quem esse meu mapa rompa
Paca cara pagará
Quem a paca cara compra.
Satisfazendo ao povo
Cego – Digo uma e digo dez No cantar não tenho pompa Presentemente não acho Quem esse meu mapa rompa Paca cara pagará Quem a paca cara compra.
Este seu lema de paca
Por favor cante de novo.
A partir daí, foi um desassossego
Cego – Digo uma e digo dez
No cantar não tenho pompa
Presentemente não acho
Quem esse meu mapa rompa
Paca cara pagará
Quem a paca cara compra.
Zé P. – Cego, teu peito é de aço
Foi bom ferreiro quem fez
Pensei que o cego não tinha
No verso tal rapidez
Cego – Arre com tanta pergunta Deste negro capivara Não há quem cuspa pra cima Que não lhe caia na cara Quem a paca cara compra Pagará a paca cara. Zé P. – Agora cego me ouça Cantarei a paca já Tema assim é um borrego No bico de um carcará Quem a cara cara compra Caca caca cacará.
Cego, se não for massada
Repita a paca outra vez.
Cego – Arre com tanta pergunta
Deste negro capivara
Não há quem cuspa pra cima
Que não lhe caia na cara Quem a paca cara compra Pagará a paca cara. Zé P.
– Agora cego me ouça Cantarei a paca já
Tema assim é um borrego
No bico de um carcará
Quem a cara cara compra
Caca caca cacará.
E Zé Pretinho, depois desse desmantelo, colocou sua viola na bandeja como sinal de que reconheceu a derrota.
PINTO DO MONTEIRO (de Carnaubinha, distrito de Monteiro, Paraíba) e LOURIVAL BATISTA (Louro do Pajeú, de São José do Egito, Pernambuco), dois gênios. Os desafios, entre eles, foram sempre de empenar. Como esse, em que Louro começou
‒ Isso foi naquele tempo, Quando você era macho. Porém, um cabra valente Passou-lhe o facão por baixo, Que o sangue correu na perna E o gato comeu-lhe o cacho.
E Pinto ‒ Por isso é que me rebaixo
Em cantar com cabra bruto,
Pois quando correu notícia
De que eu perdi esse fruto,
Sua mãe chorou de pena Nunca mais tirou o luto.
* * *
De outra vez, Pinto preparou armadilha para Louro
‒ Eu saí de Caicó
E fui bater em Tabira
De Tabira prá Penedo De Penedo a Guarabira Chegando lá eu comi O mocotó de traíra
Como traíra é peixe, Pinto jamais poderia ter comido seu mocotó.
Então, certo de ter ganho a peleja, Louro respondeu
‒ Eu já vi muita mentira De Adão até Aló De Aló até Isac De Isac até Jacó
Mas nunca houve quem visse Traíra com mocotó.
Só para ver, desolado, Pinto cantar
‒ Pois eu vim de Caicó
E fui até Guarabira
Lá vi uma vaca velha
A quem chamavam Traíra
E agora você me diga
Se é verdade ou se é mentira.
SANTANA CANTADOR, grande forrozeiro.
No Colégio Boa Viagem (Recife), prova sobre Diversidade Cultural, a pergunta era "Concorda que o forró seja patrimônio imaterial do Brasil?". Maria Clara, 10 anos e neta de Santana, respondeu ‒ Sim, pois se eu responder "não" meu avô me mata e tem um enfarte antes de morrer.
ZÉ LIMEIRA (de Teixeira, Paraíba). Cantador meio doido, andava a pé pelos sertões do Nordeste (por considerar carro coisa do demo), sempre com lenço de seda vermelho no pescoço, óculos escuros (mesmo à noite) e anéis em todos os dedos. Seus versos, com frequência, não faziam sentido. Mais famoso deles, do próprio Limeira (ou talvez de Otacílio Batista, que o terá dado ao outro de presente), os apreciadores sabem de cor (com pequenas variações).
O mote era poético, Os anos não trazem mais, para falar do passado, da nostalgia e da saudade. Só que Limeira se perdeu, no meio, e teve que dar uma volta na décima para findar no tal mote. Não custa repetir
‒ O velho Tomé de Souza Imperador da Bahia Casou-se e no mesmo dia Passou o pau na esposa. Fez que nem uma raposa Comeu na frente e por trás. Depois na beira do cais Onde o navio trafega Comeu o pobre Nobréga Que os anos não trazem mais.
* * *
É dele o (talvez) mais famoso mote das cantorias
‒ Morri o ano passado Mas esse ano eu não morro.
* * *
O poeta JESSIER QUIRINO até escreveu esses versos, no estilo de Zé Limeira
‒ Frei Henrique de Coimbra Sacerdote sem preguiça Rezou a primeira missa
Na beira de uma cacimba. Um índio passou-lhe a pimba
Ele num quis aceitar
Hoje vive a lamentar
Junto dum pé de jurema
E um bom pescador não tema As profundezas do mar.
‒ Pedro Álvares de Cabral Inventor do telefone Resolveu tocar trombone
Na volta do Zé Leal. Mas como tocava mal Arrumou dois instrumentos
Aí chegou um sargento
Querendo enrabar os três
Quem tem razão é o freguês Diz o velho testamento.
* * *
Por falar em Jessier, numa conversa, lembrei Sérgio Buarque de Holanda; que considerava palavra mais bonita, na língua brasileira,
‒ Libélula. Perguntei, a ele,
‒ Compadre Jessier, e qual a mais feia que você conhece?
‒ Fome.