Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Cony de corpo inteiro

Cony de corpo inteiro

 

Ele insiste em não querer se apresentar por completo aos seus leitores. Uma forma dissimulada de modéstia ou de fazer aquilo que no esporte se chama "esconder o jogo". Assim é o escritor e acadêmico Carlos Heitor Cony, de quem somos amigos há mais de 30 anos. Primeiro escreveu o seu antológico "Quase memória". Não contou tudo, mas deixou claro o afeto pelo pai, jornalista da velha guarda, além do apreço pelos balões hoje proibidos.


Agora, surpreende-nos com o "Eu, aos pedaços" (Editora Leya, 2010). Dá mais algumas pistas da sua vida, cheia de peripécias, como os anos vividos no Seminário São José, preparando-se para ser o que não queria: padre. Se preferiu como diz "os pecados da carne", isso não o impediu de aprender latim de forma preciosa, o que tem sido de extrema utilidade, na sua vida gloriosa de escritor, um dos maiores nascidos no Rio de Janeiro. Não espanta, pois, que tenha lá suas preferências por outros cariocas como Machado de Assis, Lima Barreto e Marques Rebello.


A leitura do último livro, o que se faz com indizível prazer, traz revelações que ajudam a montar a complexa biografia de Cony. No seu Roteiro já dá para perceber as suas aversões mais notáveis, como o ovo de Colombo, a bacia de Pilatos, o tendão de Aquiles, a espada de Dâmocles, o estalo de Vieira etc.


Mais adiante, percebemos que ele se volta para dentro de si mesmo, quem sabe motivado por uma teimosa gagueira de infância. Revela-se farto dos outros, farto de si mesmo. Acha que temos mágicos de mais por aí e reclama que ninguém fica sabendo onde foram enterrados os ossos da Dana de Teffé. Aliás, sobre esse fato policial tem uma verdadeira obsessão. Chamado de visionário pela colega Lygia Fagundes Telles, confessa que é preciso prosseguir, "independente da glória ou da vaia". Ele nunca foi vaiado.


No livro referido, que se lê com imenso prazer (são histórias curtas, sem preocupação cronológica), registra um fato extraordinário do seu caráter. Preso por militares, nos idos de 60, ficou numa pequena cela com o amigo de sempre, outro grande jornalista, Joel Silveira. De repente, ouve-se um barulho e é jogado lá dentro outro preso. Ao reconhecerem que se tratava de um contrabandista, os dois fizeram um tremendo banzé, protestando com a maior veemência: "Aqui é lugar de subversivos; contrabandista é na cela ao lado." Teve um extraordinário amor, que acompanhei, pela cadelinha Mila. Quando ela se foi, passou semanas de grande tristeza e angústia. Ao ser aconselhado a adotar outra, repetia a frase conhecida, de autoria do seu grande amigo, Adolpho Bloch: "Você tem como substituir um filho?"


Chama os que lhe pedem entrevistas e crônicas (gênero em que é mestre incomparável) de "mal-informados" e considera mau gosto falar de si mesmo. Contrariou a cigana que garantiu não ter ele nenhum futuro. Como jornalista e escritor, tem o seu nome garantido na história da cultura brasileira.


Cony, um grande apreciador do gênero feminino, afirma ser contra as mulheres que fazem os poetas sofrerem, os governantes roubarem, os comerciantes falirem, os filósofos meditarem e os pecadores pecarem. Quem com ele convive há tanto tempo e tem o privilégio de sentar ao seu lado, no vetusto plenário da Academia Brasileira de Letras, sabe que na prática não é bem assim. Ele está em busca de um nada, que é tudo.


Jornal do Commercio (RJ), 2/7/2010