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As Guerras Púnicas e Elis Regina

 

A QUEM atribuir a terrível mácula de colocar palavras e expressões inglesas no vocabulário de consumo? Antigamente, uma minoria de baianos e a maioria dos advogados apreciavam locuções latinas, os "ipso facto", "data vênia", "mens sana in corpore sano" e, sobretudo, os "sine die" e os "sine qua non". Eram abrolhos de nossa formação bacharelística, de nossa retórica provinciana. Restou o habeas corpus, que se incorporou ao vernáculo e tem largo uso nos dias que correm.


Acredito que tão desditosos tempos foram chutados para o crescente lixo da história. Deixou-se o latim, língua morta mas formosa, e, a partir do cinema falado (segundo Noel Rosa), adotou-se o inglês para acentuar os momentos quentes de uma palestra, uma confissão para iniciados ou qualquer blablablá de circunstância. Outro dia, uma estagiária de comunicação declarou o elevador "crazy" porque não parou no andar que ela desejava.


Um rapaz, contrabaixo de um conjunto amador que se esforça para gravar o primeiro CD, reclamou de um "business man" que não cedeu, em forma de patrocínio, o dinheiro necessário para o grande evento da discografia universal.


E aí está uma das diferenças entre as gerações: o "busílis" de ontem é o "business" de hoje, sendo que o primeiro foi dicionarizado. Já foi dito pelos teóricos de praxe que o homem é fruto da linguagem, ou seja, nós somos aquilo que falamos. A recíproca também é verdadeira. O que falamos nos forma.


Eu ia concluir brilhantemente esse meu raciocínio, mas um dos contínuos da Academia me disse que a "operator" me procurava para uma chamada internacional -e com essa da "operator" eu perdi qualquer vontade de operar no setor.


Numa época em que contínuos continuam a morfologia e a sintaxe dos executivos, está na cara que "something" está errado ou certo demais.


Pessoalmente, embora tenha fuçado as gramáticas latinas por necessidades vocacionais e os dicionários ingleses por premência profissional, não sou chegado às expressões alienígenas.


Tenho tanto horror ao latim como ao inglês, horror só comparado ao dos nossos bravos cabos-de-guerra que também repelem coisas e idéias alienígenas.


E aos nossos nacionalistas que detestam os capitais idem. Daí a constatação: ninguém gosta de idéias, capitais e expressões alienígenas, e nesse ponto podemos formar uma frente ampla.


Talvez a salvação nacional dependa desse acordo entre as partes. Eu toparia entrar num movimento cívico que propugnasse a erradicação total, não da malária, mas de tudo que for ou tiver o bafio do alienígena -a começar pela própria expressão "alienígena".


Bem, agora me lembro do raciocínio interrompido pelo contínuo, mas acho que ele perdeu a importância depois dessa repentina adesão a militares, nacionalistas e puristas de forma geral. Como se nota, a linguagem nos forma e informa. Se falamos besteiras, somos bestas.


Expressar besteiras em latim, inglês ou sânscrito dá na mesma, pouco altera o fato substantivo de sermos bestas em bom vernáculo mesmo.


Daí a inesperada conclusão desse raciocínio, "last but not least": repetindo Noel Rosa, se "o cinema falado foi o grande culpado da transformação" (há uma boa gravação de Aracy de Almeida deste samba dos anos 30), a internet conservou o gênero, mas aumentou o grau da invasão.


Sérgio Corrêa da Costa, ex-embaixador e ex-acadêmico, escreveu um clássico a respeito, "Palavras sem Fronteiras". Descobriu que o inglês e o latim são os idiomas que mais fornecem vocábulos ao nosso linguajar diário.


Se ainda fosse vivo, ele teria de abrir um capítulo especial aguardando as palavras e, quem sabe, os caracteres chineses que começam a entrar no trânsito internacional.


Até o momento em que escrevo esta esquisitíssima crônica, só sei duas palavras do idioma oriental mais profundo: sushi e caratê. Nem estou certo se são chinesas ou japonesas e, honestamente, não me preocupo com isso.


Não pratico caratê nem gosto de sushi. Afinal, sou um sobrevivente das Guerras Púnicas, dos ossos da Dana de Teffé e da era Elis Regina, que ainda não se acostumou com a era de Ivete Sangalo. "Causa finita".


Folha de S. Paulo (SP)  22/08/2008

Folha de S. Paulo (SP), 22/08/2008