As diversas variantes da história recente da política brasileira encontraram-se na noite de sexta-feira na posse do economista Edmar Bacha na Academia Brasileira de Letras. Recebido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, responsável pelo que Bacha considera o ponto culminante de sua vida pública, a participação no Plano Real, teve a presença de outro ex-presidente, José Sarney, com quem colaborou na elaboração do Plano Cruzado e na presidência do IBGE.
Governo que abandonou quando, para obter uma vitória arrasadora na eleição de governadores em 1986, Sarney recusou-se a fazer ajustes no Cruzado, que acabou fracassando depois de um breve período de sucesso. A tentativa de manipulação dos índices do IBGE foi a gota d’água que fez Bacha sair do governo um mês depois das eleições.
Sarney é o decano da ABL, confrade de Fernando Henrique, que o chamou de “meu amigo” no discurso de saudação a Bacha. Mas foi em protesto ao governo Sarney que Fernando Henrique e vários outros saíram do PMDB para formar o PSDB, em 1988.
Da mesma maneira que hoje o presidente Michel Temer tem que enfrentar uma tentativa de rebelião na sua base de apoio para aprovar a reforma da Previdência, Sarney em seu governo, que assumiu pela morte de Tancredo Neves, de quem era vice, teve que enfrentar a rebelião interna do PMDB e também do PFL, partido que criou ao sair da Arena, e que abandonou para integrar a chapa de Tancredo à presidência da República.
Hoje, mesmo sem mandato, Sarney continua influindo na política nacional, e faz parte atualmente do grupo que se opõe a Temer dentro do PMDB do Senado, juntamente com o senador Renan Calheiros. Se não conseguir aprovar a reforma da Previdência, o que Sarney considera o mais provável, diz-se que governo Michel Temer passará por uma “sarneyzação”, isto é, terá os mesmo problemas que Sarney teve no final de seu governo, depois da Constituinte de 1988, cujo resultado ele denunciou, tornaria o país ingovernável, com mais direitos que deveres.
O mandato presidencial de Tancredo Neves que Sarney assumiu, contrariando também os militares a tal ponto de o General Figueiredo ter se recusado a passar-lhe a faixa presidencial, era de seis anos, mas durante a Constituinte houve diversos movimentos para reduzir-lhe para 4 anos implantando o parlamentarismo, como queria a ala dissidente que acabou criando o PSDB.
Diversas vezes Sarney ameaçou renunciar se lhe tirassem dois anos de mandato, e chegou a ir à televisão para aceitar um mandato de cinco anos, dentro do presidencialismo. Um dos líderes do movimento para reduzir o mandato de Sarney foi o então governador do Rio de Janeiro Moreira Franco, hoje um dos principais ministros do governo Temer.
Sarney se lembra do período como tendo sido de múltiplas dificuldades, e enumera evidências de que eram “muito mais difíceis” do que hoje. Naquele tempo, lembra, havia o Brizola e o Lula fazendo campanha por eleições diretas antecipadas, o país estava muito radicalizado. Sarney entrará para a História como o grantidor do processo democrárico brasileiro.
Nada diferente de hoje, quando Lula e o PT acusam o governo de ilegítimo e defendem que somente uma eleição direta pode dar estabilidade política ao país. Sarney continua próximo de Lula e, derrotado o governo na reforma da Previdência, deve estar junto com os que defendem a antecipação da eleição direta para presidente da República, antes de 2018.
E do outro lado, Temer e seu secretário-geral Moreira Franco. Desta vez, todos têm um problema comum, a Operação Lava Jato. E mesmo os que, como Fernando Henrique Cardoso, não tem nenhum envolvimento pessoal com as denúncias, têm seu partido, o PSDB, atingido nos seus principais líderes.
O que torna as coisas mais difíceis hoje, na avaliação de Sarney, é que não há perspectiva de saída para a crise. Em 1989, a campanha presidencial serviu de válvula de escape à sociedade, que teve a seu dispor grandes nomes da política, como Ulysses Guimarães, Aureliano Chaves, Lula, Brizola, Mario Covas, e o “fato novo”, o governador de Alagoas Fernando Collor.
Lula já admitiu que não estava preparado naquela ocasião para ser presidente, Brizola morreu certo de que fora roubado na contagem dos votos que levaram Lula ao segundo turno contra Collor por uma margem ínfima de votos, e o vencedor Collor acabou impichado.
O que levou ao governo Itamar e ao Plano Real, cuja gênese foi relembrada ontem na posse de Edmar Bacha na Academia Brasileira de Letras, um raro intelectual público que comanda hoje talvez o principal think-tank brasileiro, a Casa das Garças no Rio.