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Jesus e Lampião

 

As duas datas do cristianismo que alicerçam nossa fé são o Natal e a Ressurreição, esta intrinsecamente ligada àquele. Dos santos não se comemora o nascimento, e sim a morte. É o momento em que eles encerram a condição humana. Com Cristo, o grande momento e a parte mais difícil e mais importante do crer é a Ressurreição. São Paulo resumiu tudo quando disse que "sem Ressurreição não existe cristianismo". Na Páscoa, renovamos o momento de pôr à prova nossa crença em Deus. A Páscoa vem do Velho Testamento, um anjo destruidor que chegava para libertar os judeus. O Cristo restaura a Páscoa com a mensagem de libertar o homem, preparando-o para a eternidade. E a hora dessa fusão é a Ressurreição.


A Semana Santa é uma liturgia ligada à história bíblica, ao que aconteceu no caminho da crucificação do Filho de Deus. Todo o Evangelho desses dias é o testemunho desse martírio. "Vós me haveis de procurar, mas para onde eu vou, vós não podeis ir", é o primeiro anúncio registrado por são João (13; 33).


Não é fácil entender esse mistério. "Melhor esquecer sem indagá-lo", é o que manda santo Agostinho para nos afastar dessa dúvida.


Minha fé criou-se e consolidou-se na infância pelo ensinamento permanente de minha mãe, pela sua doutrina, pela sua crença sem vacilações e pelo seu exemplo. A conversão deve ser muito difícil quando a vida já vai alta, quando a sedução de comprovar a sua existência leva à morte de Deus, como pregou Nietzsche.


Galileu colidiu com a descrição bíblica e pagou seu preço. Copérnico erodiu a visão geocêntrica. Com Darwin, viríamos a ter o grande desafio ao contrapor o modelo evolucionista ao criacionista. Atravessei todos esses mares e "guardei a minha fé".


Hegel, ao enfrentar esse tema, disse que havia uma trindade que não podia ser rompida entre Deus, o homem e o mundo. Mais difícil para mim do que questionar a existência de Deus é crer no nada. Isso me fez perguntar: o que existia antes do Big Bang? É mais fácil responder "Deus" do que "nada".


Melhor lembrar Pascal: "É o coração que sente Deus, e não a razão".


Assim, nesta minha Sexta-Feira da Paixão, em que todos os anos tenho de aqui refletir sobre Ela, ainda vivo aquele tempo da minha infância, em que as imagens estavam cobertas de pano roxo, em que íamos ao Senhor Morto beijar-lhe os pés e eu sabia que ele ali estava, na igreja de Pinheiro, velando pela vila, atendendo as minhas orações de menino e pronto para reprimir os meus pecados, que não existiam, porque eram tão puros que era santidade.


Como Fernando Pessoa no seu poema sobre "o Menino Jesus da minha aldeia", eu posso dizer que conheci o Senhor Morto da minha, e Ele morria banhado em nossas lágrimas e ressuscitava nas nossas aleluias do sábado, quando Judas era malhado.


Cada um de nós tem a memória de Deus de várias etapas de sua vida: da mocidade à velhice. Tudo é mistério e fé. Até o José Limeira, cantador do Nordeste que conheceu Jesus sentando praça na polícia da Paraíba para combater Lampião.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 25/03/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 25/03/2005