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Leite derramado

 

Até onde vai minha memória, em meus muitos anos de crônica, nunca passei uma semana falando de um só assunto. Mas o referendo do último domingo tanto me espantou que aqui estou eu para comentá-lo mais uma vez, sem a autoridade de ter tomado parte nele, nem ativa nem passiva, antes pelo contrário.


Faz tempo que adotei para uso próprio o comportamento daquele personagem de Gorki: distraio-me em silêncio e me aborreço em voz alta. Desta vez, porém, tanto o aborrecimento como a distração pedem a voz alta: foram demais.


O aborrecimento foi ver a inutilidade do referendo em si, uma questão já prevista numa lei que não mudaria com o sim ou com o não. Bem verdade que nem sempre as leis são cumpridas, mas não seria o "sim" que mudaria as coisas, pelo contrário, haveria mais uma lei para não ser cumprida.


O "não" teve a vantagem de dar um recado ao governo. Do ponto específico da violência, de nada adiantará, pode até piorar, mas certamente não melhorará, a situação.


Além do aborrecimento houve a distração - e muito me distraí com a cara fossenta dos arautos que durante semanas pregaram o "sim", acreditando que anunciavam uma era de bem -aventurança para o povo eleito, para a gente boa, os éticos, os transparentes que deram de aparecer na TV, na mídia, nos eventos e em toda a parte sem cobrar cachê. Gente boa trabalha de graça, na base da ideologia, da causa.


Aprendi pouquíssimas coisas ao longo dos anos que já são muitos. Uma delas, a mais consoladora, foi não chorar sobre o leite derramado. O referendo derramou o precioso leite do bem e do justo, do politicamente correto, do ético e do transparente, valores que estão em moda, como a abstinência de carne vermelha e o celular rastreado por satélite.


No próximo capítulo, esperarei um referendo sobre a mão dupla da rua Voluntários da Pátria. Espero me divertir, mais uma vez.




Folha de São Paulo (São Paulo) 30/10/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 30/10/2005