O Papa é infalível. Assim estabeleceram Pio 9º e o Concílio Vaticano 1º em 1870. Mas o Papa também é um homem e João Paulo 2º acrescenta a suas virtudes ser um pensador. Gosta de escrever, de publicar livros que vão do teatro à poesia. Agora está sendo anunciado o lançamento de seu novo livro - "Memória e Identidade" -, no qual, segundo divulgam os jornais, consta a tese de que "o comunismo foi um mal necessário, permitido por Deus para render oportunidades para o bem".
Diz o Papa: "Experimentei pessoalmente a realidade das ideologias do mal". Quero, como cristão, divergir de um dos maiores, senão o maior homem do século 20, a quem devemos uma parte essencial da derrubada do comunismo. Mas, primeiro, quero dizer que a noção do mal exclui a de ser necessário em qualquer situação.
Não podemos esquecer a frase de Churchill a Lloyd George: "De todas as tiranias da história, a mais destrutiva e a mais degradante é a bolchevista". Basta citar a filosofia de Lênin para a Comissão Extraordinária (Cheka): "Não somos um tribunal, somos um órgão de luta. Não julgamos o inimigo, nós o golpeamos. Não estamos fazendo guerra aos indivíduos, estamos exterminando a burguesia como classe. Não buscamos provas nem testemunhos para revelar fatos ou palavras contra o poder soviético. A primeira pergunta que formulamos é: "A que classe pertence, quais são suas origens, sua educação, sua profissão?". Estas perguntas definem o destino do acusado. Tal é a essência do terror vermelho".
Não posso pensar que os milhões de mortos, os expurgos que liquidaram milhões de pessoas, sem culpa, só pelo terror, pela desconfiança dogmática de Stálin, que matou seus companheiros, amigos e parentes, possa, em qualquer tempo, ser um mal necessário.
Já se disse que os "totalitarismos rivais são consangüíneos". Hitler também tinha uma concepção que pode ser aplicada atualmente e que ele transmitiu ao alto comando em Obersalzburg, a 22 de agosto de 1939: "Usarei o pretexto propagandístico para desencadear a guerra e, para o caso, pouco importa se é verossímil. Ao vencedor não se pergunta se disse a verdade. Quando se começa a fazer a guerra, o que importa não é a verdade, sim a vitória".
Esses males não precisavam existir para que a humanidade tivesse a oportunidade para o bem. Disse o Papa que "esse mal (o comunismo) era de alguma forma necessário para o mundo e para a humanidade. Pode acontecer, na verdade, que, em certas situações humanas específicas, o mal seja revelado como algo útil, na medida em que cria oportunidades para o bem". É difícil aceitar, mesmo com a autoridade papal, para mim, que isso seja verdadeiro, que o comunismo, o nazismo ou qualquer forma do mal seja necessária. Foi por causa dessa concepção do "império do mal" que Bush desestabilizou a paz mundial, e será pior se ele julgar que esse mal é necessário para o bem.
Há sempre o perigo de um julgamento político feito por uma autoridade religiosa tomar uma dimensão que cria deturpações dentro da sociedade. Num exemplo menor, vimos a "guerra dos deuses", inserida nas últimas eleições brasileiras.
O Papa João Paulo 2º foi melhor escritor nos seus poemas do que nesse julgamento.
Folha de São Paulo (São Paulo) 15/10/2004