Leigo e bota leigo nisso em matéria de política e direito, volto a comentar, a meu modo e circunstância, o julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal. Sem condições para analisar o mérito de um dos casos mais complicados do nosso tempo, vou limitar-me a algumas considerações praticamente marginais ao processo em si.
Desde o início, quando um então deputado denunciou a compra de votos no Congresso, a total ignorância era o argumento principal dos suspeitos, a começar por um ex-presidente da República e a terminar na raia miúda de funcionários do terceiro escalão ou de escalão nenhum.
Os suspeitos, que além de suspeitos eram também interessados no sepultamento da questão, limitaram-se à alegação de que o caso não existia, não passava de um recurso sujo dos adversários, uma vez que ninguém a não ser o delator que também acabou condenado sabia da existência de um plano para garantir uma base aliada que desse sustentação às medidas tomadas ou ameaçadas pelo governo.
Na base de "que nada sabiam", o processo foi batizado de Ação Penal 470, contrariando o deputado Miro Teixeira que, salvo engano meu, foi o primeiro a falar em mensalão, termo negado veementemente pelos já citados suspeitos.
Pedindo as devidas vênias aos interessados, e guardando as proporções do mensalão com o julgamento de Nuremberg, que condenou criminosos de guerra depois do segundo conflito mundial no século 20, lembro que o argumento brandido pelos chefes que sobreviveram ao nazismo, era o mesmo: não sabiam de nada. A culpa pelo assassinato de milhões de pessoas foi atribuída a dois suicidas, Hitler e Himmler, este último o responsável historicamente pela "Solução Final" e aprovada com entusiasmo pelo seu chefe máximo.
Diante da alegada negação dos piores crimes da Humanidade, inclusive do Holocausto, o juiz que presidia o julgamento fez exibir no plenário alguns documentários que até hoje nos horrorizam e frequentemente são exibidos nos cinemas e nas televisões de todo o mundo.
Mesmo assim, um dos réus principais, o todo-poderoso Göring, que depois de Hitler era o personagem mais importante daquele regime, negou a realidade das monstruosas cenas documentadas, dizendo que qualquer fotógrafo ou cinegrafista podia registrar cadáveres anônimos em diversos lugares do mundo. Bem editadas, as cenas dariam uma prova dos crimes que os demais réus diziam ignorar.
Numa palavra: tal como os réus do mensalão, eles não sabiam de nada, nunca tinham ouvido falar em campos de concentração e crematórios.
O próprio Hermann Göring suicidou-se em sua cela, horas antes de ser enforcado. Ele, o ex-marechal-de-campo, pedira ao juiz o favor de ser fuzilado como um soldado no campo de batalha, mas garantiu a seus julgadores que "daqui a cem anos haverá estátuas de mármore em todas as cidades alemãs, em minha homenagem, como o grande herói da grande Alemanha".
Somente um réu admitiu sua culpa no maior massacre da história. Foi o arquiteto oficial do regime, Albert Speer, amigo pessoal de Hitler, que escapou da forca mas foi condenado a 20 anos de prisão por ter aceito o cargo de ministro dos Armamentos, já no fim do regime. Ele confessou que recrutava prisioneiros para o trabalho nas fábricas, salvara muitos da morte mas assumia a responsabilidade pelo crime praticado.
O próprio Churchill encaminhou ao Tribunal de Nuremberg um pedido de libertação para o arquiteto. Stálin, cujas tropas tomaram Berlim e apressaram o suicídio de Hitler, pediu que aquela corte não atendesse ao apelo do seu eventual aliado inglês.
Ainda bem que o caso do mensalão não pode ser comparado nem de longe às atrocidades nazistas: para alguns, Deus ainda é brasileiro. Mas o escândalo político-financeiro que o STF escancarou para todos nós, pode ser o primeiro sinal de que o mesmo Senhor, que abriu as torneiras para as águas do Dilúvio e providenciou o fogo para destruir Sodoma e Gomorra, decida mudar de nacionalidade e resolva ser cidadão das ilhas Papua.
Folha de S. Paulo, 12/10/2012